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Publicado em: 29/09/2017

'A lei mostrou que o aborto é uma prática segura, acessível e infrequente'

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Maíra Mathias (EPSJV)

O periódico científico The Lancet publicou ontem um estudo que afirma que, todos os anos, 55,7 milhões de mulheres fazem aborto em todo o mundo; 25,1 milhões se submetem a procedimentos inseguros para interromper a gravidez e, dessas, nada menos do que 97% moram em países que restringem ou proíbem a prática. Diante desses números, gostaria que o senhor fizesse um balanço do antes e depois da implantação da lei de descriminalização do aborto no Uruguai, que completa cinco anos em 17 de outubro.

A implantação da lei foi exitosa. As dificuldades que enfrentamos estão vinculadas fundamentalmente a problemas de informação e formação das equipes profissionais, por falta de ginecologistas em alguns departamentos [o equivalente aos estados brasileiros], que fomos solucionando, e um entendimento equivocado da objeção de consciência. No entanto, nada disso serve como juízo de valor à implantação da lei, que foi muito boa no contexto que a lei pode ser. É uma lei muito complexa a uruguaia. Está apoiada pelo Ministério da Saúde e tem o apoio de profissionais de saúde comprometidos com a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos.

Se uma mulher decidir interromper a gravidez no Uruguai, como funciona a rede de proteção criada pela lei? De uma maneira geral, quais são os mecanismos que a lei estabelece?

Quando uma mulher decide interromper a gravidez, consulta o seu prestador de saúde. A partir daí, tem uma primeira entrevista com a equipe que a apoia e assessora sobre o aborto e, se ela decide concretizar a decisão, abre-se um formulário e, cinco dias depois dessa consulta, é entregue a medicação para que a mulher faça o aborto no seu domicílio, rodeada por sua rede familiar. Ou, eventualmente, a administração do medicamento acontece na instituição de saúde. A primeira opção é sempre pelo aborto com medicamentos porque evidências científicas demonstram que é mais efetivo e seguro até as 12 semanas [de gestação]. Se há alguma dificuldade, institucionaliza-se para que se realize o procedimento cirúrgico. Mas, em princípio, faze feito com medicamentos, quem faz é a mulher, que é monitorada pela equipe de saúde – e isso tem funcionado para a maioria das mulheres. Algumas mulheres também recorrem a redes de apoio social que também têm tido resultados. Em termos gerais, o sistema funciona de maneira adequada.

Como foi o processo de construção da lei? O governo teve que bancar sua posição contra setores conservadores na política e na sociedade?

O processo de construção foi muito complexo. Mas a realidade é que o Uruguai teve uma experiência prévia, de dez anos antes da aprovação da lei, que se chama modelo de redução de riscos e danos e iniciativas sanitárias contra o aborto provocado em condições de risco. Com esse modelo, a percepção social do aborto mudou e passou a ser considerada como um tema de saúde pública há algum tempo. E isso permitiu que fosse bem compreendida por parte da população a necessidade de uma lei que descriminalizasse o aborto como um problema de saúde. Ganhamos. Foi difícil porque a lei que foi negociada pelo parlamento  é complexa. Participei da regulamentação [da lei] no Ministério da Saúde Pública, e essa regulamentação foi implantada nos serviços.

Depois de quase cinco anos de vigência da lei, a sociedade uruguaia tem uma percepção diferente do aborto hoje?

Creio que sim. Depois de cinco anos de implementação, o que se compreende é que foi uma lei benéfica para as mulheres, as famílias e a sociedade. Não houve nenhuma dificuldade com a implementação, com complicações nem muito menos mortes. As mortes que ocorreram foram abortos feitos de maneira clandestina e inseguros, situações de violência em geral. Mas, em geral, foi muito exitoso e resultou, inclusive, numa redução da taxa anual de abortos [desde a implantação da lei]. O que significa que estamos chegando à fase de estabilização e, logo, vamos observar uma diminuição dos casos de aborto [em relação a antes da lei]. A lei mostrou que o aborto é uma prática segura, acessível e infrequente.

No Brasil, o aborto segue sendo um tabu e há um conjunto de iniciativas parlamentares em curso para barrar até mesmo a interrupção da gravidez em caso de estupro ou anencefalia. Na sua opinião, quais são os elementos fundamentais para que grupos feministas, militantes da saúde pública consigam fazer pressão em seus países para que as legislações avancem?

Fui ao Brasil várias vezes. Com certeza, é o país da América Latina onde mais fui agredido por parlamentares e grupos antidireitos. Pró-vida somos nós; antidireitos são os outros que, na realidade, são pró-morte porque as políticas que eles promovem, ao invés de favorecer a vida, favorecem o aumento da mortalidade materna e, consequentemente, o aumento da mortalidade infantil. Ou seja: pró-vida sou eu; pró-morte, eles. A experiência no Brasil foi difícil e a lição que eu tirei foi que o país teria que avançar implementando modelos de redução de danos e permitindo que, mesmo na ilegalidade, se possa assessorar as mulheres brasileiras no Sistema Único de Saúde sobre os métodos com menor risco para a realização do aborto.