O que é a Assembleia Mundial da Saúde e qual sua importância?
Começa hoje a 71a Assembleia Mundial da Saúde. O evento, que acontece em Genebra, na Suíça, até sexta (26), é considerado a instância máxima de decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS). É de lá que saem as diretrizes sanitárias que devem ser seguidas em todo o planeta a partir de votações que envolvem os 194 países-membros do organismo.
Como parte integrante do sistema das Nações Unidas, durante muito tempo dos seus recém-completos 70 anos de existência, a organização exerceu o protagonismo absoluto no desenho das prioridades da saúde global. Há algumas décadas, contudo, não é mais assim.
“A OMS não é o ator mais poderoso da governança global da saúde. Se formos falar do peso financeiro, há vários atores que são mais importantes do que a OMS. E dependendo da área, dependendo da doença, dependendo da questão, existem outros atores que são muito importantes”, situa João Nunes, professor de Relações Internacionais do Departamento de Política da Universidade de York, na Inglaterra.
Analistas vêm considerando este um momento-chave para a OMS. Depois de ficar dez anos sob o comando da médica Margaret Chan e passar por uma crise de credibilidade em relação a sua atuação frente a epidemias como o ebola e zika, no ano passado a organização passou por uma renovação. Há muita expectativa em torno do seu novo diretor, o etíope Tedros Ghebreyesus, que assumiu em julho passado e faz sua estreia na condução da assembleia. Primeiro africano à frente da OMS, Tedros agradou ao indicar um gabinete 60% composto por mulheres.
O que está em jogo
Se em abril a OMS comemorou sete décadas desde sua criação, há pela frente outro marco importante a ser celebrado em setembro de 2018: os 40 anos da Conferência de Alma-Ata, que produziu consenso de que a atenção básica deveria ser o principal pilar dos sistemas nacionais de saúde. E estabeleceu a meta de que, até 2000, a população mundial deveria ter seu direito à saúde efetivado.
Realizada no Cazaquistão, então república da União Soviética, Alma-Ata foi o ápice e o início de uma guinada que colocaria a OMS cada vez mais à margem da governança global de saúde. “Durante a década de 70, cresce no seio da OMS uma abordagem mais política da saúde. Alma-Ata declara a meta de atingir saúde para todos no ano 2000 – ou seja, durante a Guerra Fria. E foi acusada por vários setores de estar avançando numa agenda socialista porque falar de saúde coletiva, para muita gente da época mas, ainda hoje, é visto como socialismo. Basta ver os debates sobre a saúde nos Estados Unidos”, contextualiza João, que completa: “E a OMS sofreu por conta disso”.
Durante os anos 80, veio a reação. Durante o período em que Ronald Reagan e Margaret Thatcher implantavam uma agenda neoliberal em seus países, influenciando o resto do mundo, instituições financeiras como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) ganharam protagonismo também na saúde, incentivando reformas pró-mercado nos sistemas nacionais. Já a OMS, conta o professor da Universidade de York, se retraiu para uma agenda mais técnica, apolítica, focada em abordagens conhecidas como ‘verticais’.
“Existe uma tensão na história da saúde global entre aquilo que se chamou as abordagens verticais, que são intervenções com foco numa única doença, e as abordagens horizontais, que privilegiam os determinantes da doença e olham para todo contexto em que elas surgem. E essa tensão está presente na história da OMS, que começa privilegiando a saúde no seu aspecto mais abrangente e depois se volta para projetos de controle e erradicação de únicas doenças, esquecendo todas as transformações em nível econômico, social e cultural que precisam ocorrer para que, de fato, exista a saúde no seu sentido mais amplo”, explica João, para quem a abordagem vertical continua dominante na saúde global.
A principal discussão da assembleia – e prioridade número 1 do mandato de Tedros – é em torno de um tema que divide opiniões por se apresentar (enganosamente, argumentam os críticos) como um resgate do espírito de Alma-Ata. A cobertura universal em saúde é defendida como uma forma de proteção dos mais pobres dos gastos catastróficos com saúde, como o pagamento por cirurgias. A ideia, que entrou em 2015 na agenda de desenvolvimento sustentável como meta a ser atingida por todos os países até 2030, é que os governos arquem com esses gastos, garantindo um rol mínimo de serviços, exames e procedimentos. Isso pode ser garantido com fundos públicos e provisão privada, como na contratação de seguros de saúde, como no sempre citado exemplo da Tailândia; quanto com a estruturação de um sistema nacional público que garante o acesso universal, como o NHS do Reino Unido.
“Os países da América do Sul defendem o acesso universal à saúde e conseguiram incluir essa palavra na redação da resolução sobre cobertura universal à saúde aprovada na Assembleia Mundial da Saúde em 2014”, lembra Luana Bermudez, coordenadora de relações internacionais do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, o Isags, órgão da Unasul. “Não é que defender que todos sejam cobertos não seja bom. A questão é como essa cobertura será feita. A OMS usa muitos exemplos diferentes, mistura sistemas universais com aqueles baseados na compra de serviços no mercado, e isso é uma estratégia para conseguir levar adiante o projeto. Eles são espertos”, observa.
E é justamente a cobertura universal a estrela desta assembleia. O diretor-geral da OMS deixou de lado a prerrogativa de abrir a assembleia e escalou cinco chefes de Estado para a tarefa. Todas as autoridades defenderão a cobertura universal. Dentre elas, especulava-se no fim de semana, estaria o presidente da Argentina, Mauricio Macri.
Amanhã (22), acontece a discussão e a votação das prioridades da OMS para o período 2019-2023. “A votação do plano de trabalho é tema mais quente da agenda da assembleia este ano. É o que vai definir o mandato do Tedros”, resume Luana.
O plano, que está alinhado aos objetivos de desenvolvimento sustentável e tem um apelo tanto ambicioso quanto marqueteiro: quer que mais um bilhão de pessoas tenham cobertura universal de saúde, mais um bilhão estejam protegidas de emergências sanitárias e mais um bilhão tenham melhor saúde e bem-estar. “É um documento vago, são números políticos”, resume a coordenadora de relações internacionais do Isags.
Iguais, mas diferentes
Mas se os holofotes estão sob o novo diretor-geral, o propósito da Assembleia Mundial da Saúde é dar protagonismo aos países. Cada uma das 194 nações tem o mesmo peso na votação. Mas a participação na Assembleia varia. E muito. “Depende da capacidade que o país tem de levar vários delegados, já que o regulamento não limita o número de representantes. Há países que levam um delegado, enquanto outros participam com 20”, explica Luana Bermudez. Como várias reuniões acontecem ao mesmo tempo, uma delegação grande dá ao país a possibilidade de participar – e influenciar – todas as discussões.
E não é surpresa para ninguém que alguns países têm mais poder do que outros. “A posição dos países do Norte está sempre alinhada. Em momentos de polêmica, eles se juntam num canto da sala para discutir. É bem claro. Eles se organizam muito bem. E acabam influenciando a decisão de outros países”, diz Luana.
Durante a assembleia, muitas das negociações acontecem nos bastidores, fora dos comitês. “Os países negociam da maneira que podem, com o que têm a oferecer”, diz ela, que lembra que nas resoluções mais polêmicas, se forma um grupo de redação que fica do lado de fora dos comitês. “Os trabalhos às vezes varam a madrugada por causa das polêmicas e os países do Norte normalmente tem muita margem de influência”.
As diferenças não param por aí. Desde 2011 a União Europeia ganhou força. A ONU garantiu à UE direitos diferentes de qualquer outro bloco regional. “O único que tem voto e não é país é a União Europeia. Ela tem uma posição diferenciada de outros blocos regionais, pode se manifestar, propor resoluções e votar”. Ou seja, quando os países da UE definem uma posição comum, o representante do bloco apresenta a proposta e vota em nome dos seus 28 membros (27, em breve, se a saída do Reino Unido se concretizar).
Crise na Unasul
Tendência contrária seguem os países da América do Sul. Mesmo sem o statusdiferenciado da UE, o bloco criado em 2008 vinha articulando consensos e defendendo essas posições em nome da região durante a assembleia. “Falar em nome de 12 países traz força e legitimidade para as posições. Além disso, países pequenos, que não têm força para se impor, ganham expressão graças a essa atuação em conjunto. O Caricom [Comunidade do Caribe] faz isso: são vários países pequenos que se organizam e isso resultou em vitórias”, descreve Luana. Em 2012, o Caricom conseguiu eleger uma caribenha para a direção da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço regional da OMS. Carissa Etienne, foi reeleita ano passado e fica no posto até 2022.
De 2010 a 2016, a Unasul apresentou posicionamentos comuns em todas as assembleias usando como porta-voz uma das nações. O acesso a medicamentos foi o grande destaque do período. A coordenadora de relações internacionais do Isags explica que esse é um problema comum a todos os países da região, independentemente da posição ideológica dos governos no poder, já que países ricos, onde está instalada a indústria farmacêutica de ponta, tendem a defender posições alinhadas com os interesses dessas empresas. Já os países pobres e em desenvolvimento lutam por abertura de patentes de drogas e transferência de tecnologia, por exemplo.
Com a crise instalada desde 2017 agravada pelo anúncio, feito em abril deste ano, de que Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru suspenderam temporariamente sua participação do bloco, a Unasul deixou de atuar na assembleia. “É uma pena que ano passado não tenha sido apresentada nenhuma posição comum. E, neste momento, é claro, isso já não é possível”, lamenta Luana.
Crise na OMS
Mas as turbulências na Unasul não são as únicas a rondar a assembleia. O evento acontece em um momento em que todos os olhos estão voltados para a OMS. A atuação da organização nas chamadas emergências sanitárias tem sido criticada por sua lentidão. A virada se deu com a epidemia de ebola que aconteceu entre 2014 e 2016 e causou 11 mil mortes. E, depois, com a epidemia de zika, que chocou o mundo com milhares de casos de bebês com microcefalia no Brasil.
Com um novo surto de ebola acontecendo neste momento na República Democrática do Congo, há muita expectativa em torno da atuação do organismo. A situação, contudo, é diferente já que o país – onde pela primeira vez na história, em 1976, a doença foi registrada – tem um histórico de surtos em localidades isoladas. É o nono que enfrenta. Além disso, há uma vacina.
“Existe um conjunto de pressões para que a OMS se posicione melhor na preparação para as emergências sanitárias. Ainda não sabemos bem o resultado, mas parece-me que a forma como a OMS se posicionou em relação a este último surto de ebola demonstra já algumas mudanças de atitude face à questão emergencial. É a primeira vez que um diretor-geral vai ao terreno no momento de surgimento de um surto”, analisa João Nunes, que acredita que a OMS se tornou um alvo fácil, mas que pouco se fala sobre o contexto em que a atuação na epidemia de ebola 2014-2016 se deu. “Na emergência internacional anterior, da gripe, a OMS tinha sido atacada por agir rápido demais e supostamente criar pânico na população. É como se diz em Portugal: a organização é criticada às vezes por ter calma, às vezes por não ter…”.
Mas há outros fatores de pressão que evidenciam a perda de protagonismo da OMS. Na última quarta (16/05), a primeira-ministra da Alemanha Angela Merkel e os chefes de Estado da Noruega e de Gana enviaram uma carta endereçada a Tedros Ghebreyesus e seu gabinete. Nela, afirmam que “é preciso fazer mais” para atingir os objetivos de desenvolvimento sustentável, conhecidos pela sigla ODSs. Dentre eles, está a garantia de vidas saudáveis e bem-estar para todos. Como organismo da ONU, cabe à Organização Mundial da Saúde tomar a dianteira no monitoramento do seu progresso.
Pois Merkel e os outros líderes parecem achar que não é bem assim. Na carta, convidam a OMS a participar, junto com outras nove organizações (como Unicef, Bando Mundial e o Fundo Global de Enfrentamento à Aids, Tuberculose e Malária), da elaboração de um plano de ação global para vidas saudáveis e bem-estar para todos. Segundo a carta, “todos os esforços devem convergir” para a elaboração desse plano.
O convite é uma amostra do estágio atual de fragmentação de esforços na saúde global – e do crescente incômodo que isso gera. Tem sido lido como um indicador de que a OMS e, por consequência, a assembleia têm perdido espaço nessa arena. Isso porque o plano será apresentado não na próxima Assembleia Mundial da Saúde, mas em outro evento: o 10º Simpósio Mundial da Saúde, que acontece em outubro em Berlim, e é promovido não pela ONU mas pela Aliança M8, que reúne 25 instituições acadêmicas de todo mundo, entre elas, a Universidade de São Paulo (USP).
“A OMS não é o ator mais poderoso da governança global da saúde, tampouco aquele com mais recursos financeiros. A Fundação Gates tem um orçamento maior do que a OMS – e não é surpresa que a organização tenha que correr atrás dos Gates, do Wellcome Trust, e de todas as demais agências de fomento. A OMS não tem autonomia financeira, não gera fundos próprios, e, portanto, depende de seus principais doadores”, contextualiza João.
E dá exemplos: “Na saúde materno-infantil, a Unicef é um grande ator. Em termos de combate ao HIV-Aids, malária e tuberculose, há o Fundo Global. Também a Fundação Gates é muito forte na questão da malária e tem dado atenção às doenças negligenciadas. O PEPFAR, que é de responsabilidade da presidência dos Estados Unidos, também é muito importante na questão do HIV-Aids, principalmente no continente africano”.
As instituições financeiras continuam desempenhando um papel importante na saúde. O Banco Mundial hoje é o principal fiador da ideia de cobertura universal. Os relatórios de progresso e monitoramento são feitos pela entidade em parceria com a OMS.
O FMI também é um ator de saúde global, na medida em que iniciativas de austeridade e ajuste estrutural têm impacto na saúde. “Existe todo um conjunto de efeitos na saúde decorrentes das políticas financeiras. Uma política de ajuste fiscal com cortes no SUS tem um impacto imenso sobre a população brasileira que, provavelmente, a OMS com suas recomendações não tem”, compara João. E acrescenta: “Portanto, muitas vezes atores que nem têm sob sua reponsabilidade direta questões de saúde, acabam por ter um impacto na saúde porque as coisas estão ligadas. A economia da saúde é extremamente importante. No neoliberalismo, cada vez mais”.
Artigo publicado em abril deste ano no blog do periódico científico The Lancet defende uma virada na geopolítica da saúde global. Segundo seus autores, Richard Seifman e Ok Pannenborg (ex-funcionário do Banco Mundial), a saúde global pode ser comparada a uma casa construída na era do capitalismo industrial. Com o passar dos anos, vários cômodos foram sendo acrescentados à arquitetura original. “É um convite à exaustão”, criticam, nomear os atores da saúde global, mesmo que lançando mão apenas de suas siglas. E listam alguns deles: OMS, Unicef, UNFPA, UNAIDS, IAVI, GAVI, Fundo Global, Vaccine Alliance, Stop-TB, Roll-back-Malaria, Malaria-No-More, BMGF, Chan-Zuckerberg Foundation, Usaid, DFID CDC, NIH, GHIF, Wellcome Trust, Norad, CUGH.
“Cada doença, cada intervenção, cada arranjo de financiamento, cada inovação tem a sua própria sala que, com frequência, não tem sequer porta ou janela que a conecte com o resto da casa”, escreveram. Em bom português, eles argumentam que esses puxadinhos estão levando a estrutura ao colapso.
Mas não só porque as iniciativas – e, portanto, os esforços – se multiplicam e se sobrepõem, mas também porque os habitantes da casa são criaturas do século 20, míopes para o crescente poder e influência que a China exerce (e tende a exercer cada vez mais). Ao contrário, dizem, com a eleição de Donald Trump e seu ‘American First’, não é exagero pensar que a influência dos Estados Unidos na saúde global diminua. Outros países ricos, como Holanda, Canada, Dinamarca, Áustria, França e Itália já seguiram o mesmo caminho. (A Alemanha, ao contrário, quer incrementar sua influência – mas ainda não colocou a mão no bolso de forma a suplantar os EUA, segundo este artigo).
Na conclusão, Seifman e Pannemborg defendem uma espécie de “acordo de Bretton Woods” ou “Plano Marshall” para a saúde, ambos marcos políticos que orientaram o mundo para uma abordagem pró-mercado. “O Oeste e o Leste precisam achar um novo caminho para fazer frente aos desafios da saúde global, incorporando uma ampla paleta de valores, constructos cultuais e modelos econômicos”, defendem, afirmando que se os “poderes tradicionais da saúde global” não se reposicionarem geopoliticamente, se tornarão “obsoletos e irrelevantes” até o fim do século.
Num comentário sobre o artigo, o editor do site Impakter, ligado a entidades filantrópicas internacionais, vai além e defende que uma solução mais rápida é fazer um “acordo de Bellagio”, em referência à cidade italiana na qual a Fundação Rockefeller tem uma propriedade onde organiza reuniões que mesclam autoridades, acadêmicos e empresários. De lá, saíram discussões que dominam a agenda global, entre elas a cobertura universal de saúde.
Encruzilhada
Terá a OMS força suficiente para fazer por dentro mudanças que se contraponham a esse tipo de ‘solução’ vinda de fora? “Nesse momento as grandes questões de fundo que se colocam para a organização são sua arquitetura institucional, sua resposta às emergências sanitárias e seu financiamento – e esta, para mim, é uma questão fundamental”, diz João.
A arquitetura a que ele se refere entra na pauta como reforma da OMS e é uma das cinco prioridades do mandato de Tedros. Todos esperam para ver como o assunto será conduzido pelo novo diretor-geral. Segundo Luana Bermudez, o processo de discussão e implementação da reforma da OMS está em curso há alguns anos.
“A organização se viu incapaz de atender às demandas dos países e aos desafios da saúde global com a agilidade necessária à autoridade máxima em saúde. Além da competição com outros organismos e com fundações filantrópicas que começaram a atuar no âmbito da saúde. Então a ex-diretora, Margaret Chan, propôs uma reforma na OMS baseada em três eixos: governança, gestão e programa. Mas isso foi visto por alguns países como algo mais ‘cosmético’ do que uma reforma real e profunda”, explica.
De acordo com ela, por isso, a Unasul defendeu um processo de reforma mais “inclusivo e transparente”, partindo do pressuposto de que a organização deveria dar maior clareza às origens e tensões que iniciaram o processo de reforma, com destaque para a relação da organização com os atores não estatais. Ou seja, com os grandes doadores. Na avaliação do bloco, essa dependência representa um risco para a formulação de políticas de saúde e para a definição das prioridades, que devem refletir as necessidades dos Estados-membros – e não de determinadas ONGs.
O grande anúncio da OMS na semana anterior à realização da 71ª Assembleia era fruto de uma parceria com alguns desses atores não-estatais. Na segunda (14/05) foi lançado um guia com seis passos para que se consiga banir a gordura trans industrial em todos os países até 2023 (mesmo deadline do plano de trabalho que será aprovado pela assembleia). A iniciativa tem a chancela da Fundação Gates e da Bloomberg Philanthropies.
Depois de vários anos de discussão, o Fensa, marco para relacionamento com atores não estatais, foi aprovado em 2016. “A criação do Fensa é uma tentativa de ter um certo controle da influência desses atores que não são os governos. Mas é recente e está em fase de implementação”, diz Luana.
“Por um lado, a OMS é um ator político, mas também é um ator técnico-científico e isso envolve questões da saúde global, como a resolução de problemas através de mecanismos tecnológicos, de governança, etc. Mas há também um conjunto de interesses políticos que subjazem a organização” observa João, para quem a assembleia é, “teoricamente”, o órgão político por excelência da OMS porque todos os seus membros estão lá representados.
“Teoricamente é um local onde as discordâncias podem ser expressas, mas acho que mais importante do que a assembleia é o dia a dia da OMS expresso na definição de prioridades. A introdução de um assunto na agenda não é feita na assembleia”, observa. A pauta do evento é decidida pelo Conselho Executivo da OMS, composto por 34 membros com qualificação técnica no campo da saúde indicados pelos países. Os mandatos duram três anos, e vencem alternadamente. O conselho decide o que vai ser discutido na Assembleia em janeiro e se reúne uma segunda vez no ano em maio, imediatamente depois do encerramento da assembleia.
“É no funcionamento cotidiano da OMS que são introduzidos determinados temas, ideias e agendas. É aí que existe a discussão mais aprofundada, ou mais técnica, porque há mais tempo. A assembleia é o local onde depois serão discutidos e aprovados, de uma forma mais geral e mais ampla, esses documentos prioritários. Mas a definição de prioridade é algo que ocorre nos bastidores, nas reuniões dos comitês e no trabalho diário do organismo”.
Ele dá como exemplo uma discussão que vem chamando atenção na pauta deste ano: o impacto das picadas de cobra. “Como a picada de cobra surgiu como um tema a ser discutido? Houve todo um trabalho de lobby, negociação, pesquisa sobre seus impactos que, lentamente fez com que esse tema fosse alçado como algo importante. A assembleia vai examinar um documento que já foi preparado e votar uma resolução sobre o tema”, descreve João. (A propósito: o problema foi adicionado à lista de doenças tropicais negligenciadas em novembro passado e a resolução é iniciativa da Costa Rica e da Colômbia. Estima-se que 90 mil pessoas morram todos os anos e 400 mil sofram com efeitos colaterais do envenenamento, como a perda de membros e da visão.)
“A questão de quem controla, de que forma determinados assuntos entram na agenda e saem da agenda; isso, de fato, levanta perguntas sobre quais são os interesses por trás de determinados assuntos. A OMS responde a muitas demandas – e nem todas elas são necessariamente suspeitas ou antidemocráticas. Mas há demandas dos doadores, Estados e atores internacionais que providenciam o dinheiro”, resume o professor.
Mas, mesmo diante desse cenário político cada vez mais complexo – e mesmo por causa dele – João Nunes acredita que a OMS e, portanto, a assembleia ainda são importantes e precisam ser defendidas. “No nível nacional, só uma entidade pública com um sentimento de saúde coletiva e solidariedade pode providenciar a saúde. E o mesmo se aplica à escala global. Por isso que, apesar de todas as falhas e deficiências da OMS, eu continuo a defendê-la. Os outros atores têm seus próprios interesses em vista. Só a OMS e os seus órgãos democráticos conseguem ainda garantir essa ideia de saúde como bem coletivo, e a questão da solidariedade entre países. Isso é algo que está na gênese da organização e precisa ser mantido. A OMS é nossa melhor garantia de uma concepção mais solidária da saúde global”.