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Publicado em: 14/07/2022

Oficina discute o fortalecimento da APS a partir da formação intercultural

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Com o tema ‘Interculturalidade e a formação de técnicos em Saúde’ foi realizada, no dia 12 de julho, a segunda oficina do ciclo sobre a formação e o trabalho dos técnicos em saúde no mundo pós-Covid. O evento, cuja abertura foi feita por Hernán Sepúlveda, assessor de Recursos Humanos de Saúde do Programa Sub-regional da Organização Pan-Americana da Saúde para a América do Sul (Opas/OMS-SAM), reuniu ainda três convidadas para o debate: Hermínia Llave Nina (Bolívia), Janete Ismael Mabuie Gove (Moçambique) e Ana Lúcia Pontes (Brasil). O encontro foi apresentado e mediado por Sebastián Tobar, assessor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz), e Carlos Eduardo Batistella, coordenador de Cooperação Internacional da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

O ciclo de oficinas é uma iniciativa EPSJV/Fiocruz, em cooperação com a Rede Internacional de Educação de Técnicos em Saúde (RETS), a Rede Ibero-Americana de Educação de Técnicos em Saúde e a Rede de Escolas Técnicas de Saúde da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (RETS-CPLP). Realizado com o apoio do SAM e do Cris/Fiocruz, visa criar um espaço privilegiado para intercâmbio, reflexão, aprendizado e formulação de propostas para o aprimoramento das instituições de das políticas de formação de técnicos em saúde. As oficinas são transmitidas via YouTube, em português e espanhol, pela VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz.

Por que discutir interculturalidade na Saúde?

Em sua fala de abertura, Carlos Batistella reforçou o fato de a Atenção Primária à Saúde (APS) ser considerada estratégica na resposta às demandas e necessidades ampliadas de saúde das populações, especialmente diante dos enormes desafios impostos pela pandemia de Covid-19 aos sistemas nacionais de saúde. 

Segundo ele, mais do que nunca é preciso considerar as particularidades e necessidades de grupos populacionais específicos, geralmente vulnerabilizados social e economicamente em função de sua origem social ou étnica por conta dos processos de colonização, do racismo estrutural, de diferenças religiosas, movimentos migratórios e xenofobia que se manifestam de forma diferenciada nos diversos países em razão das contingências históricas e geopolíticas. “No campo da saúde, já existem diversas iniciativas de interculturalidade que buscam o reconhecimento e a integração de epistemologias e práticas médicas tradicionais dessas populações em programas e políticas de atenção, mas ainda há muito a fazer”, ressaltou, lembrando que o trabalho intercultural na saúde exige um profundo conhecimento da realidade na qual intervém, assim como o conhecimento das necessidades da população e dos grupos culturalmente diversos, respeitando sua participação no processo de ensino-aprendizagem.

Para finalizar, Batistella formulou algumas questões importantes para o debate: Em que medida a dimensão da interculturalidade tem sido considerada nas políticas de saúde de cada país? Como evitar que a identidade étnica e cultural dos usuários represente uma barreira ao acesso e à oportunidade de uma atenção à saúde de qualidade nos serviços? Como conciliar as tensões culturais entre as práticas da medicina “moderna” ocidental e das medicinas tradicionais? Como superar a perspectiva da “tolerância” com o culturalmente diverso e construir uma relação de interculturalidade efetiva, onde as relações de alteridade se fortaleçam, se enriqueçam e se transformem mutuamente? Para além da barreira linguística, o desprezo dos profissionais pela crença e expectativas de seus pacientes em torno do processo saúde-doença representa um obstáculo ao estabelecimento de ações de saúde. Que competências são necessárias ao pessoal da saúde para o diálogo intercultural? É possível ir além da dimensão educacional e comunicacional destes diálogos, envolvendo a participação comunitária no planejamento e resolução dos problemas encontrados? Como evitar o risco da interculturalidade se tornar um discurso de assimilação de grupos sociais, em que as práticas tradicionais são revalorizadas, mas a análise e a intervenção sobre os determinantes históricos de suas condições de vida, são deixadas de lado?

Fortalecimento da APS e mudança de paradigma da formação em saúde

Dando continuidade ao evento, Hernán Sepúlveda procurou trazer algumas reflexões sobre o tema, a partir do está estabelecido na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007). De acordo com Sepúlveda, em seu Artigo 24, o documento da ONU afirma que os povos indígenas têm direito a manter suas práticas tradicionais saúde, bem como a ter acesso, sem discriminação, a todos os serviços sociais e de saúde existentes. Nesse sentido, segundo ele, caberia aos governos fazer todos os esforços nesse sentido, incluindo a conservação das plantas medicinais, dos animais e dos minerais que se relacionam com essas culturas. “Como podemos alcançar a saúde universal respeitando essas tradições?”, questionou, apresentando, em seguida alguns aspectos destacados na Política de Etnicidade e Saúde da Opas/OMS (2017), na qual os Estados-Membros concordaram em assegurar a abordagem intercultural da saúde e o tratamento equitativo dos povos indígenas, afrodescendentes, ciganos e membros de outros grupos étnicos.

Conforme o assessor da Opas/OMS, de forma geral, para além das questões culturais que as diferenciam, há questões geográficas significativas, uma vez que geralmente, e na maioria dos países, essas populações também se encontram afastadas dos grandes centros, vivendo em áreas desatendidas ou subatendidas, onde as estruturas sanitárias são escassas.

Nesse momento, ele citou a Estratégia para o acesso à Saúde e cobertura universal da Saúde (OMS, 2014), a qual afirma que o fortalecimento do primeiro nível de atenção é primordial, uma vez que nesse nível podem ser resolvidos cerca de 80% dos problemas de saúde das pessoas. “Infelizmente, na maioria dos países, a maior preocupação ainda é com os níveis secundário e terciário”, lamentou, ressaltando que o aumento da resolutividade da APS implica necessariamente na mudança de paradigma de formação da força de trabalho em saúde. “Ainda formamos profissionais para o trabalho nos centros urbanos e com perspectivas voltadas para as especialidades e que, dificilmente se dispõem a trabalhar em áreas remotas. No entanto, se desejamos fortalecer a APS, precisamos formar trabalhadores aptos a trabalharem com as questões culturais das diferentes populações nas ações de prevenção, promoção e atenção à saúde, precisamos alterar os currículos e descentralizar as ofertas de formação, a fim de ampliar o acesso aos processos formativos por pessoas dessas comunidades”, enfatizou.

Sobre a formação e o trabalho dos técnicos em saúde, especialmente no contexto pós-pandêmico, Sepúlveda destacou o papel que esses trabalhadores, que são muitas vezes os primeiros interlocutores entre as comunidades e o sistema de saúde, tiveram durante a pandemia, especialmente nas ações de prevenção e imunização, e que terão futuramente no mundo pós-pandêmico. “Esses técnicos precisam conhecer muito bem as comunidades nas quais atuam. Chegar nos grupos indígenas com uma seringa, requer muita competência intercultural”, exemplificou.  

Para concluir, Sepúlveda reiterou que os governos e as instituições de formação devem ter em mente que o fortalecimento da APS precisa considerar os diferentes grupos populacionais e que é preciso formar trabalhadores com consciência social. “Para que tudo isso ocorra, no entanto, é fundamental que se faça uma verdadeira reforma dos sistemas de saúde e que haja, por parte do governo e das instituições, a decisão política de ser fortalecer a APS”, finalizou.

Ao agradecer a participação de Hernán Sepúlveda, Sebastián Tobar, citou um artigo em que analisa o projeto da nova Constituição do Chile, a qual dá um salto qualitativo nesse sentido, ao incorporar as questões da saúde indígena e da medicina tradicional ao modelo de atenção.

Na Bolívia, a interculturalidade da Constituição à formação e ao trabalho em saúde

Formada em Educação e em Enfermagem, com mestrado em Saúde Pública, a docente e chefe da carreira de Enfermagem na Escola Nacional de Saúde (ENS) Hermínia Llave Nina trouxe para a oficina a experiência boliviana na questão da interculturalidade. A ENS é vinculada ao Ministério da Saúde e Esportes.

Para Hermínia, que tem uma longa trajetória de trabalho junto aos povos indígenas, um grande diferencial de seu país é que essa questão está expressa na Constituição Nacional de 2009, a qual, em seu Artigo 3, afirma que afirma que “a nação boliviana é formada por todos os bolivianos, pelas nações e povos indígenas camponeses nativos, e pelas comunidades interculturais e afro-bolivianas que, juntos, constituem o povo boliviano”, e  que “seus conhecimentos e sabedoria tradicionais, medicina tradicional, línguas, rituais, símbolos e vestimentas valorizados, respeitados e promovidos” (Artigo 30. II. 9).  Além disso a Constituição também define que o sistema de saúde é único e inclui a medicina tradicional das nações e povos indígenas originários e camponeses, cabendo ao Estado a responsabilidade de “promover e garantir o respeito, uso, pesquisa e prática da medicina tradicional, resgatando conhecimentos e práticas ancestrais baseadas no pensamento e valores de todas as nações e povos indígenas originários e camponeses”. “A interculturalidade, portanto, não é um tema recente na Bolívia, nós temos trabalhado com isso há bastante tempo”, disse.

Essas premissas constitucionais, segundo a professora, fazem com que as particularidades e necessidades de grupos populacionais específicos, geralmente social e economicamente vulneráveis devido a sua origem social ou étnica como resultado de processos de colonização, sejam reconhecidas pelo sistema de saúde e tenham fundamentado a construção da Política de Saúde Familiar Comunitária Intercultural (SAFCI), em 2008, e suas estratégias de implantação. “Com base nessa Política, os trabalhadores da saúde estão presentes na comunidade, dando acesso aos cuidados, fortalecendo a participação comunitária na tomada de decisões e buscando articular aquela que podemos chamar de medicina biomédica aos saberes e práticas tradicionais”, explicou.

No que se refere à Educação Superior, ela está definida na Constituição como intracultural, intercultural e plurilíngue, devendo, entre outras coisas, promover políticas de extensão e interação social que fortaleçam a diversidade científica, cultural e linguística, visando à construção uma sociedade com maior equidade e justiça social.  A educação superior técnica e tecnológica, por sua vez, deve formar professionais com vocação de serviço, compromisso social, consciência crítica e autocrítica da realidade sociocultural, capacidade de criar, aplicar, transformar a ciência e a tecnologia, articulando os conhecimentos e saberes dos povos originários aos universais, a fim de fortalecer o desenvolvimento do Estado Plurinacional.

Todo esse marco legal permitiu à Escola Nacional de Saúde implementar aspectos interculturais aos currículos. “Hoje, os currículos incluem entre suas áreas de conhecimentos e saberes, o idioma nativo, a realidade do Estado Plurinacional (colonialismo e descolonização) e a medicina tradicional, o que permite que, que seus egressos possam, no desempenho de suas funções, interagir mais facilmente com as diferentes populações”, explicou, ressaltando essas áreas se desenvolvem de forma transversal no processo de formação.

Hermínia finalizou sua apresentação mostrando a importância que a vigilância comunitária, com visita de casa em casa, o uso da medicina tradicional e a educação em saúde, entre outras coisas, tiveram no controle inicial da epidemia de Covid-19 até que o sistema de saúde pudesse estar melhor preparado para fornecer medicamentos e vacinas. “Nesse momento, diante da escassez de recursos humanos, foi preciso recrutar e capacitar alunos das carreiras de saúde para permitir que até as áreas mais remotas pudessem ser atendidas, por equipes que respeitam as crenças e valores desses povos e conhecem as necessidades das diferentes comunidades”, contou. Para ela, esse trabalho inicial foi fundamental para que, posteriormente, essas populações aceitassem a imunização e, quando necessário, os tratamentos preconizados pela medicina biomédica.  

Em Moçambique, é preciso transformar a política existente em prática

Para apresentar a experiência de Moçambique, a oficina contou com a participação de Janete Ismael Mabuie Gove, que é graduada em Nutrição pelo Instituto Superior de Ciências de Saúde (ISCISA - Maputo), onde atualmente é professora e pesquisadora, e mestre em Alimentação e Nutrição pela Universidade Federal do Paraná (UFPR - Brasil).

Janete iniciou sua fala com uma visão geral de Moçambique, um país da África Subsaariana, um Estado laico, com cerca de 32 milhões de habitante (2020), diversidade cultural evidenciada e práticas tradicionais de saúde em pleno vigor. Em seguida, ela contextualizou a Saúde Tradicional no país, lembrando que a Política da Medicina Tradicional foi aprovada pelo Conselho de Ministros em 2 de março de 2004, com diversas propostas de estratégias de implantação.  “Infelizmente, a Política ainda está fragilizada e os praticantes da medicina tradicional ainda estão marginalizados, apesar de haver uma Associação dos Médicos Tradicionais (AMETRAMO) uma Direção Nacional de Medicina Tradicional”, lamentou.

Segundo Janete é importante nós olharmos para a medicina tradicional com base num paradigma distinto daquele utilizado pela OMS para definir a saúde como o estado de pleno bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.  “É preciso olhar com outros olhos a questão do tempo da ancestralidade, dos aspectos histórico desses povos, de suas condições socioeconômicas, das mudanças ideológicas vividas no país e da hegemonia cultural”. 

De acordo com ela, em Moçambique os Praticantes de Medicina Tradicional (PMT) são considerados um meio de prestação de cuidados de saúde, paralelo, com conhecimentos e capacidades para educar as comunidades sobre boas práticas de saúde, em colaboração com Serviço Nacional de Saúde. “Os curandeiros são pessoas que têm o dom de se comunicar com os mortos e passar as suas mensagens para os vivos. Eles têm o poder de possessão, e podem tratar doenças espirituais, espantar os azares, restaurar a sorte e cuidar de outros males que não têm solução na medicina ocidental. Além disso, muitas vezes as pessoas recorrem à medicina tradicional por conta das enormes distâncias que existem entre elas e as unidades de saúde e só procuram os serviços em caso de insucesso dos tratamentos tradicionais, muitas vezes já em estado crítico”, explicou, complementando: “A principal questão é: como evitar que a identidade étnica e cultural dos usuários represente uma barreira ao acesso e à oportunidade de uma atenção à saúde de qualidade nos serviços?”.

Para Janete, antes de tudo é preciso não fazer um pré-julgamento dos cuidados de saúde tradicional. Ou seja, é importante que os profissionais de saúde procurem fazer uma análise histórica e social sobre as formas de atenção à saúde de cada comunidade. Só assim, será possível semear uma boa articulação na preservação da saúde e da vida. “As comunidades tradicionais locais têm uma organização social com costumes, línguas, crenças e tradições, relativas às práticas de cuidados tradicionais de saúde reconhecidas pelas pessoas e devem ser mantidas e valorizadas por todos”, afirmou.

Continuando sua apresentação, ela explicou que a melhor forma de conciliar as tensões culturais entre as práticas da medicina “moderna” ocidental com as práticas tradicionais implica em reconhecer as práticas existentes, identificar os saberes populares que tradicionalmente são utilizados na prevenção, tratamento e na cura de doenças; criar políticas não excludentes; e realizar pesquisas sobre as plantas medicinais utilizadas.

O importante, para ela, é superar a perspectiva da “tolerância” com o culturalmente diverso e construir uma relação de interculturalidade efetiva, onde as relações de alteridade se fortaleçam, se enriqueçam e se transformem mutuamente. “Isso depende de envolvimento comunitário efetivo, adoção de normas ou protocolos exequíveis e não demonização dessas práticas e conhecimentos por parte dos próprios trabalhadores da saúde”, enfatizou.

Para finalizar, Janete falou sobre as competências necessárias ao pessoal da saúde para o diálogo intercultural e para o alcance da ‘Saúde para todos’, preconizada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Isso passa obrigatoriamente pela revisão dos currículos formativos, pelo respeito às práticas tradicionais, pela provisão da assistência médica numa perspectiva holística, pela participação comunitária no planejamento e resolução dos problemas encontrados, pelo incentivo à representatividade dos PMT nas suas comunidades e pela integração dos sistemas de saúde tradicional e ocidental ou ‘moderno’, pela criação de redes promotoras, pela educação em saúde e pela verdadeira articulação de saberes”, apontou. Veja o vídeo sobre a experiência de Janete Mabuie

No Brasil, o curso de formação técnica para os Agentes Indígenas de Saúde

A experiência brasileira foi apresentada por Ana Lúcia Pontes, médica e doutora em Saúde Pública, que exerce um trabalho de destaque com a saúde indígena e com a formação de Agentes Indígenas de Saúde.

Ana Lúcia, que atualmente integra os quadros da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), iniciou sua participação trazendo alguns dados e um pouco da história dos povos indígenas, que hoje representam 0,4% da população brasileira. “No século XVI, a população estimada era de cinco milhões de pessoas de mais de mil povos. Na década de 1970, se considerava que esses povos iam desaparecer, pelas altas mortalidades ou pela “assimilação” na sociedade nacional. Felizmente, essa situação mudou e entre 2000 e 2010 essa população passou de cerca de 306 mil para 896 mil”, afirmou.

Segundo ela, a população indígena está distribuída em 24 estados, 432 municípios e 505 terras indígenas (12,5% do território nacional), sendo que 54% estão na região norte do país (Amazônia Legal). São 305 etnias, falantes de 274 línguas, e mais de 100 registros de grupos solados (isolamento voluntário). Da população indígena total, aproximadamente 64% habitam em áreas rurais, enquanto cerca de 36% vivem nos centros urbanos. “No que se refere à saúde e às condições de vida ainda existem importantes desigualdades a serem superadas”, alertou.

No que diz respeito aos direitos Constitucionais, ela explicou que apenas na Constituição de 1988, ficaram garantidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e é reconhecida a demarcação e usufruto exclusivo de seus territórios. A Constituição também acaba com a ideia de tutela do Estado sobre os índios. “Em 1999, a chamada Lei Arouca institui o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SASI SUS) e define a organização da atenção por meio de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas”, explicou, completando: “Em 2002 é instituída a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena (PNASPI), com o objetivo de assegurar o acesso à atenção integral à saúde, organizada sob a forma dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), que devem implementar ações de atenção primária articuladas com a rede de serviços do SUS, para garantir assistência de média e alta complexidade. Dentre as várias diretrizes estabelecidas na PNASPI, está a preparação de recursos humanos para o contexto intercultural”, explicou.

Ela também destacou que em 1986, a 1ª Conferência de Proteção à Saúde do Índio já definia entre suas diretrizes, o respeito e reconhecimento das noções e práticas de saúde dos povos indígenas e a necessidade de estimular a formação de indígenas como profissionais de saúde, em todos os níveis.

Ana Lucia deu continuidade à sua apresentação falando sobre os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) no Brasil, cuja história remonta à década de 1980, quando universidades e organizações não governamentais (ONG) realizaram projetos de formação e capacitação de índios para desenvolverem ações de saúde nas comunidades. A partir de 1999, com a Lei Arouca, esses agentes passam a integrar as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena. “Em 1998, eram 1.400 AIS; em 2012 chegaram a 6 mil, e atualmente são cerca de 4 mil, os quais, de acordo com algumas pesquisas, têm diferentes perfis de atuação em cada região e distrito sanitário, mas que apresentam uma forte tendência para a aplicação e distribuição de tecnologias biomédicas”, afirmou, ressaltando que até o momento, seu trabalho e formação ainda não foram regulamentados.

Sobre o Curso Técnico de Agente Comunitário Indígena de Saúde (CTACIS), Ana Lúcia relatou a experiência realizada nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos (região do Alto Rio Negro), onde 77% da população se autoidentifica como indígena, e 95% da população habita na área rural. Nessa região vivem povos falantes de idiomas de três troncos linguísticos: Arawak, Tukano e Maku.  A população indígena estimada totaliza cerca de 38 mil pessoas, de 20 povos, distribuídas em mais de 800 assentamentos.

O projeto, segundo ela, tem origem em 2007, a partir de uma demanda da Federação das Organizações Indígenas e do Conselho Distrital do Alto Rio Negro, com o objetivo de realizar formação profissional, adequada ao contexto local, e elevar a escolaridades dos AIS em serviço na região. Ele é fruto de uma articulação inicial entre o Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia) e a EPSJV/Fiocruz e depois com outras instituições e órgãos de governo.

O curso, com carga horária total de 1440 horas e desenvolvido na modalidade presencial e semi-presencial (prática profissional), incluiu três etapas formativas: nivelamento do ensino fundamental até 2010; Ensino Médio de 2010 a 2012; e a formação técnica que teve início em 2009 e conclusão em 2015. Dos 198 estudantes que iniciaram o curso, 139 concluíram o ensino médio e a formação técnica com sucesso.

De acordo com Ana Lúcia, o curso foi desenvolvido como uma experiência piloto que busca gerar reflexões e materiais didáticos para a qualificação dos AIS em outras realidades e esteve assentado sobre os seguintes pressupostos teóricos:

  • Atenção Primária como forma de organização do modelo de atenção;

  • Atenção diferenciada como diretriz do Sistema de Saúde Indígena;

  • Promoção da saúde como intervenção nos determinantes e condicionantes do processo saúde doença;

  • Educação em saúde como forma de empoderamento e fortalecimento político dos sujeitos;

  • Vigilância em saúde como forma de reorganização das práticas de saúde no território;

  • Educação indígena: interculturalidade, bilinguismo, relação dialógica, especificidade e diferença, diversidade cultural; e

  • Pesquisa e trabalho como princípios educativos.

Dentre as estratégias didáticas e interculturalidade, Ana Lúcia destacou: atividades de discussão e sistematização de conhecimentos em grupo em língua indígena; apresentação e debate dos trabalhos em sala em língua indígena e em português; observação de processos produtivos na comunidade; participação de narradores e lideranças indígenas e de antropólogos; produção de mapas dos territórios; redação de relatórios e histórias; realização de entrevistas e aplicação de questionários; construção de conceitos pertinentes; apresentação e debate de vídeos; produção e leitura de textos; dramatizações; apresentações para a comunidade; mutirão nas comunidades; e apresentação dos profissionais do Distrito Sanitários e discussão das rotinas de trabalho. “Foi uma experiência de muita aprendizagem e que forneceu ferramentas importantes para o trabalho desses agentes nas comunidades”, completou.

Ela relatou alguns desafios que precisaram ser superados: o alto custo e as dificuldades logísticas para a implementação da iniciativa, a dificuldade de encontrar docentes com o perfil adequado e de produção de material didático específico, a mudança de um modelo de de atenção biomédico, centrado no curativismo, para um modelo com foco na APS e na vigilância da saúde e, especialmente, o fortalecimento da identidade desses agentes no âmbito do trabalho em equipe e a forte resistência dos demais profissionais das equipes para aceitar as mudanças na atuação desses trabalhadores, alguns dos quais chegaram a ser demitidos ao final do curso. “Os desafios foram muitos, mas também houve avanços, por exemplo: o aumento de compromisso desses agentes com o processo formativo e com as suas próprias comunidades, a maior articulação entre os agentes e as lideranças indígenas e a estruturação de rotinas e protocolos de serviço, embora eles não tenham sido efetivamente incorporados pelos serviços”, relatou. 

Para encerrar, ela falou sobre o livro ‘Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde do Alto Rio Negro’, que descreve a experiência; sobre a BVS Saúde dos Povos Indígenas, que reúne um amplo acervo de matérias técnicos e acadêmicos sobre o tema; e sobre os materiais didáticos voltados para a qualificação dos agentes indígenas.

Após as apresentações houve a oportunidade de interação com o público num debate instigante sobre diversos aspectos do tema, por cerca de cerca de 30 minutos.

Vídeos do evento na íntegra

Apresentações (PDF)