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O colapso emocional na vida acadêmica

Postado em: 
03/09/2025

Resenha / Resumo: 

Por trás das cortinas do prestígio acadêmico, dos títulos, das bancas, dos currículos impecáveis e dos artigos publicados em revistas de alto impacto, há um silêncio institucional, o silêncio da dor. Um silêncio que não é ausência de som, mas ausência de cuidado, de políticas concretas, de humanidade. Um silêncio que mascara a exaustão, a ansiedade crônica, os episódios depressivos, as crises de pânico, os surtos secretos de milhares de estudantes e pesquisadores. Um silêncio que adoece.

Enquanto celebramos a ciência como um dos pilares do progresso humano, negligenciamos a saúde de quem a faz. E isso é mais do que uma contradição: é uma falência moral. O ambiente acadêmico é muitas vezes vendido como um espaço de liberdade intelectual, de descobertas e de impacto social. E, de fato, pode ser tudo isso. Mas também pode ser, e frequentemente é, um terreno fértil para o adoecimento psíquico.

A pressão por produtividade, o medo constante de não ser suficiente, a competitividade velada (ou explícita), a insegurança financeira, a instabilidade das bolsas, a ausência de reconhecimento e, em muitos casos, a relação tóxica com orientadores ou superiores — tudo isso constrói uma rotina que adoece o corpo e o espírito. O estudante de mestrado que não dorme há três dias por causa de uma entrega de relatório. A doutoranda que sente o coração disparar ao abrir emails do orientador. O professor em início de carreira que esconde seu sofrimento atrás de uma agenda lotada. O pesquisador sênior que lida com burnout, mas continua entregando produtividade como se fosse máquina. Todos esses casos estão acontecendo agora mesmo. E quase todos são invisíveis. Porque a academia não sabe – ou não quer – olhar para isso.

Se há algo mais cruel do que o adoecimento em si, é a forma como é recebido institucionalmente: com silêncio, indiferença ou culpabilização da vítima.

 

“Não está aguentando?”

“Talvez esse meio não seja pra você.”

“É normal, todo mundo passa por isso.”

“Na minha época era pior.”

“Mas você tem bolsa, por que está reclamando?”

 

Frases assim não são exceções. São o roteiro não escrito da negligência institucional. A cultura acadêmica foi moldada sobre uma ideia perversa de que sofrimento é parte do processo. Que é preciso “dar conta”, “ter garra”, “ser resiliente”. Como se fazer ciência exigisse, necessariamente, deixar a saúde mental pelo caminho. Essa naturalização da dor cria um ciclo de silêncio: quem sofre, cala. Quem escuta, minimiza. Quem deveria agir, se omite. O sofrimento vai sendo empurrado para debaixo do tapete dos laboratórios, dos departamentos, dos centros de pesquisa. Enquanto as universidades se orgulham de sua produção científica, de seus rankings e indicadores, pouco se fala sobre quantas pessoas desistem, adoecem ou até morrem nesse caminho.

Dados recentes apontam que mais da metade dos estudantes universitários já apresentou sintomas de ansiedade ou depressão. Em alguns programas de pós-graduação, esse número é ainda mais alarmante. E isso não é exclusividade do Brasil. Um estudo global mostrou que estudantes de pós-graduação têm seis vezes mais chance de desenvolver transtornos de ansiedade e depressão do que a população geral. Esses números não são estatísticas frias. Refletem histórias, sonhos. Cada ponto no gráfico é um grito sufocado.

O que torna esse cenário ainda mais grave é o fato de que as instituições sabem disso. Pesquisas internas, relatos, ofícios, denúncias, reuniões, tudo isso existe. O que falta, frequentemente, é vontade política para agir. Há universidades sem psicólogos disponíveis, ou com atendimento reduzido a uma única sessão, ou dificuldade de agendamento por alta demanda. Programas de pós-graduação sem qualquer tipo de escuta estruturada. Casos de abuso psicológico ou assédio moral que são arquivados ou tratados como “desentendimentos interpessoais”. Coordenadores que preferem proteger nomes a cuidar de vidas.

A omissão institucional se camufla em burocracia, em escassez de recursos, na ideia de que “não é responsabilidade nossa”. Mas é. Quando uma universidade exige produtividade, ela precisa oferecer suporte. Quando forma pesquisadores, precisa formar também pessoas. Quando cobra excelência, precisa garantir bem-estar.

Falar sobre saúde mental na academia não pode ser um modismo de setembro amarelo. Não basta abrir “rodas de conversa” se não houver acolhimento real. Não basta criar comissões se elas não tiverem poder de ação. Não basta ouvir, se a escuta não vier acompanhada de políticas.

Precisamos de estrutura institucional, psicólogos dedicados ao atendimento discente, capacitação de orientadores para lidar com sofrimento psíquico, canais anônimos e efetivos para denúncia, flexibilização de prazos em casos de adoecimento, incorporação da saúde mental nos regimentos e nas práticas cotidianas. Acima de tudo, precisamos mudar a cultura. Redefinir o que entendemos por sucesso, por excelência, por “ser bom”. Precisamos criar espaços onde seja possível ser vulnerável sem ser julgado. Onde seja possível pedir ajuda sem medo de punição.

A ciência precisa de mentes brilhantes. Mas também precisa de corações que batem. De corpos que descansam. De pessoas que vivem com dignidade. Não se constrói conhecimento com sofrimento crônico. Não se sustenta inovação em cima do adoecimento coletivo. Não se transforma o mundo ignorando a dor de quem o estuda. O silêncio institucional diante da saúde mental abafa um grito que percorre nossas universidades. É hora de ouvi-lo e de responder não com discursos, mas com ações. Nenhuma publicação vale mais do que uma vida.

Isac G. Rosset é professor do Departamento de Engenharias e Exatas da UFPR – Setor Palotina

Autor / Organizador: 

Questão de ciência

Instituição: 

Isac G. Rosset

Ano da Publicação: 

2025

Idioma da publicação: 

Português

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