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Publicado em: 28/11/2018

4ª Reunião Geral da RETS - Da declaração de Alma-Ata à declaração de Astana: avanços ou retrocessos?

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Julia Neves - EPSJV/Fiocruz

Os 40 anos de Alma-Ata e o papel dos técnicos em saúde na efetivação de sistemas universais de saúde foi o tema do Seminário de abertura da 4ª Reunião da Rede Internacional de Educação de Técnicos em Saúde (RETS), realizada de 12 a 14 de novembro, no Rio de Janeiro, juntamente com a 4ª Reunião Ordinária da sub-rede da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (RETS-CPLP). Mediado pela professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Márcia Valéria Morosini, o debate contou com o ex-presidente e atual coordenador do Centro de Relações Internacionais (Cris) da Fiocruz, Paulo Buss, e a assessora no Ministério da Saúde e Desenvolvimento Social da Argentina, Isabel Duré. “É muito difícil falar sobre Astana e sobre o momento atual sem fazer uma revisão do que foi a Alma-Ata. Uma das principais reversões foi que a Declaração de Astana assume que Alma-Ata vive, pela potência do seu documento. Foi uma conquista difícil realizada pelo Brasil, pelos outros países da América do Sul que estavam juntos lá e também por países africanos que sabem da importância da atenção primária na vida institucional, na vida das pessoas, na vida do sistema de saúde”, iniciou Buss, propondo-se a fazer um resgate histórico: “No centro da abordagem da Alma-Ata estão ideias como acessibilidade universal, equidade, integração da prevenção e tratamento, responsabilidade do governo pela saúde das populações e participação da comunidade”.

Em 1978, lembrou Buss, os países membros da OMS, reunidos em Alma-Ata, na atual República do Cazaquistão, determinaram, através de um relatório e posteriormente da Declaração de Alma-Ata, um conjunto de princípios para proteger e promover a saúde de todas as pessoas, evidenciando a atenção primária à saúde  como orientadora de um sistema de saúde integral. Da Conferência Internacional sobre Atenção Primária de Saúde participaram cerca de três mil pessoas de mais de 100 governos, e representantes de 67 agências das Nações Unidas e organizações não governamentais. “A Declaração de Alma-Ata traz a saúde como um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não simplesmente como a ausência de doenças. A saúde é vista como um direito humano fundamental e a concepção do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer ações de muitos outros setores sociais e econômicos além do setor saúde. Ou seja, o documento constrói a questão dos determinantes sociais, que vem desde o século 19, mas com conceito contemporâneo”, destacou. Outra questão levantada por Buss é que o documento chama atenção para a grande desigualdade que se verificava no estado de saúde dos povos entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento: “Isso foi visto como política, social e economicamente inaceitável”.

A Declaração também traz os cuidados primários de saúde como cuidados essenciais em saúde, “baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos, mediante sua participação e a um custo que a comunidade do país possa manter em cada fase do seu desenvolvimento, o espírito da autoconfiança e da autodeterminação dos povos”, ressaltou, explicando: “Ou seja, coloca a atenção primária como parte integrante do sistema e o foco principal do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. No documento, a atenção primária representa o primeiro nível de contato do sistema atual de saúde, por isso a gente diz que esses cuidados são levados o mais próximo possível do lugar onde as pessoas vivem e trabalham, e constitui o primeiro elemento de um processo continuado de assistência à saúde”.

O coordenador do Cris falou do destaque que Alma-Ata deuà questão dos recursos humanos e ao trabalho que seria equivalente ao de agentes comunitários de saúde na época. Segundo ele, as atribuições desse profissional foram baseadas na experiência dos Feldsher, que eram técnicos de nível médio da União Soviética, e dos ‘Médicos de pés descalços’, da China. “Feldsher era um grupo de não médicos treinados para atenção primária e também para funcionar como agentes dentro de espaços mais sofisticados do sistema de saúde. Os ‘Médicos de pés descalços’ da China eram verdadeiramente para a área rural, principalmente, um grande ideário que depois se estende para os agentes comunitários em outros países do mundo”, contextualizou.

O tema da cooperação dos países também ficou no centro da discussão do documento, dizendo que é preciso aplicar melhor o uso dos recursos mundiais, dos quais, uma parte considerável seria gasta em armamento e conflitos militares. “Lamentavelmente, de 1978 para cá, os gastos em armamentos e conflitos militares só aumentaram, quer dizer, as guerras vão ficando cada vez mais sofisticadas. Alma-Ata chama atenção para que esses recursos militares sejam direcionados para questões sociais”, apontou.

O que vem depois?

Sobre os desdobramentos de Alma-Ata, Buss destacou que, em 1979, a Assembleia Mundial da Saúde endossou a Declaração. Dois anos depois, a Assembleia Geral Organização das Nações Unidas (UNGA) aprovou uma resolução especial que incentivava que todos os estados membros deveriam implementar uma estratégia global de saúde para todos até o ano 2000, sob a coordenação da OMS. “Apesar de ficar aquém de muitas aspirações que tinha, não há dúvida que a Conferência de Alma-Ata e a declaração sobre atenção primária se tornaram uma perene referência na comunidade da saúde global”, afirmou.

Os entendimentos sobre o que é APS e suas aplicações ao longo dos anos sofreram diversas interpretações e abordagens – APS seletiva, atenção primária, APS abrangente de Alma-Ata e APS com enfoque em Saúde e Direitos Humanos.  A APS seletiva, segundo Buss, reúne um conjunto de atividades de serviços de saúde voltados à população pobre, enquanto a atenção primária refere-se exclusivamente à porta de entrada do sistema de saúde em um local de cuidado. “A terceira concepção é a APS abrangente de Alma-Ata, que é uma estratégia para organizar o sistema de atenção a partir da atenção primária, para a sociedade promover saúde, e, finalmente, o enfoque em saúde e direitos humanos que enfatiza a compreensão da saúde como direito humano e a necessidade de abordar os determinantes sociais e políticos mais amplos de saúde”.

Quatro décadas depois de Alma-Ata, a Conferência de Astana, no Cazaquistão, aconteceu nos dias 25 e 26 de outubro de 2018, com cerca de dois mil participantes. O objetivo, de acordo com Buss, foi um novo compromisso com a APS compatível com o atual momento histórico global e a Agenda 2030  e seus objetivos de desenvolvimento sustentável. “O principal produto da Conferência foi a Declaração de Astana. “Ao apropriar-se de todos os valores, princípios e a missão que se coloca para a atenção primária, é um documento de valor. O ataque à atenção primária não vem de Astana, não vem da OMS, o ataque à atenção primária vem de governos neoliberais que querem a privatização de todo o sistema de saúde”, defendeu.

Segundo Buss, a Declaração de Astana traz a leitura da APS seletiva como Cobertura Universal de Saúde, cuja proposta é ampliar o acesso a serviços de saúde, diminuir as dificuldades financeiras das pessoas que utilizam esses serviços e pagam do próprio bolso, além de manter a solidez financeira dos sistemas de previdência. “A Cobertura Universal tem centralidade na cobertura financeira, com responsabilização dos indivíduos e desresponsabilização do Estado, centrando-se no acesso a um seguro saúde, com pacotes restritos à capacidade de pagamento, o que de nenhuma forma garante o acesso aos serviços de acordo com as necessidades de saúde, seja na dimensão individual, e menos ainda na dimensão coletiva”, concluiu.

A agenda inconclusa da formação e do trabalho dos técnicos em saúde

De acordo com a argentina Isabel Duré, a Declaração de Astana resgata ao mesmo tempo os princípios de Alma-Ata e a existência de problemas de recursos humanos em saúde. “Não podemos pensar em políticas de recursos humanos em saúde se não temos um sistema nacional de saúde com políticas claras e de financiamento. A partir da Declaração de Alma-Ata e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, apareceram alguns marcos globais e regionais para a política de recursos humanos”, afirmou, lembrando que a Declaração de Alma-Ata focalizou os recursos humanos, incluindo médicos, enfermeiros, parteiras, auxiliares e trabalhadores comunitários, bem como pessoas que praticam medicina tradicional, com capacitação em questões sociais e técnicas para atuar como equipe multidisciplinar de saúde e atender às necessidades da comunidade.

Com base no relatório da OMS sobre investimento na força de trabalho para saúde (em inglês, ‘Working for health and growth: investing in the health workforce’), Isabel ressaltou que o setor saúde, nos últimos dez anos, gerou muitos empregos. Entretanto, a realidade atualmente é outra: “Está previsto nesse momento um déficit de 18 milhões de cargos de postos de trabalho no mundo”. O relatório, segundo ela, propõe a criação de 40 milhões de postos de trabalho no setor saúde até 2030. A partir do documento, Isabel chamou atenção para a perspectiva de gênero na força de trabalho. “Os 70% de todos os empregos da saúde no mundo são femininos, e os que se criarão também vão ser tomados por mulheres”, sublinhou. No entanto, as mulheres não são ainda reconhecidas. “As diferenças salariais entre homens e mulheres são significativas”, prosseguiu. Ela citou um estudo recente feito na Argentina, por meio do qual foram identificadas diferenças salariais entre os gêneros de 19% entre os profissionais de nível superior, e de 15% entre os técnicos. “A metade do trabalho das mulheres está no papel de cuidadoras não remuneradas. No entanto, a boa notícia é que esse papel de cuidador está se normatizando com propostas de políticas públicas. Há um chamado para que essas mulheres sejam reconhecidas e profissionalizadas”, disse.

Sobre o nível de escolaridade dos técnicos no mundo, Isabel afirmou que há profissões técnicas de nível superior, em sua maioria, e outros de nível médio. “A formação técnica de nível superior acontece na maioria dos países, mas não em todos. Portanto, cada vez mais temos que olhar para a ocupação e menos para o nível da formação. Devemos deixar de dividir hierarquicamente os processos de profissionalização tradicionais e olhar a partir do processo de profissionalização de cada um. Me parece que é isso que vai nos ajudar a gerar visibilidade à categoria”, sublinhou, explicando que ainda persiste a ideia de que os técnicos são os que têm maior capacitação que auxiliares, mas menos que um profissional: “Se queremos entender essa agenda inconclusa, precisamos compreender que a história da formação técnica em cada um de nossos países está atravessada por marcas diferentes. Os técnicos em saúde no mundo todo buscam legitimação e isso é um processo de luta, de tensão”.

Em relação aos desafios, Isabel ressaltou que é preciso pensar na educação contínua desse trabalhador técnico, além de novos postos de trabalho, em formas de incluí-los na educação interprofissional e em novos modos de relação de trabalho no interior das equipes de saúde. “Temos grupos com profissionais diversos, mais idosos, mais jovens, imigrantes. Nossos trabalhadores têm que estar preparados para esta interculturalidade”, concluiu.

En Brasil

Como mediadora da mesa, Márcia Valéria Morosini abordou o contexto brasileiro em que, segundo ela, se configura um cenário de fragilização da atenção primária à saúde pela revisão da Política Nacional de Atenção Básica. “O que temos visto no estado do Rio de Janeiro é a demissão de trabalhadores, o fechamento de equipes, recolocando obstáculos ao acesso e atenção à saúde universal”, denunciou, acrescentando que há desafios que podem ser superados em rede: “Podemos avançar no trabalho coletivo, mesmo que tenhamos distintas condições, mesmo com os países desiguais que somos, mas a Rede nunca antes foi tão necessária quanto agora para enfrentarmos o atual contexto internacional e nacional em que sobressalta a hegemonia da ideia da saúde como mercadoria”.

Márcia Valéria explicou ainda que setor privado da saúde descobriu já há algum tempo a atenção primária como espaço ou como meio de recomposição de suas perdas lucrativas. “Não é à toa que têm sido propostos nos países, e aqui também, planos simplificados de saúde mais baratos, para que sejam acessíveis como opção àqueles que tenham o mínimo de recursos para comprar saúde, e que, assim, no nosso país, vão deixando o SUS pela perda de qualidade da atenção e pela dificuldade de acesso”, lamentou.

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