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Publicado em: 06/08/2019

Um debate global

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Maíra Mathias (EPSJV/Fiocruz), enviada à Genebra no âmbito do programa WHO Watch, com recursos da Medico International.

No século 19, o movimento de bens e mercadorias de um ponto a outro do planeta não parava de crescer. De carona com o comércio, circulavam vírus, bactérias e outros micro-organismos indesejados. O medo da propagação de doenças como cólera, febre amarela e peste moldou o início da cooperação global em saúde, que tem como marco a primeira conferência sanitária internacional realizada em Paris, em 1851, com o objetivo de estabelecer regras para as quarentenas, nome dado ao período de reclusão de indivíduos, animais e produtos estrangeiros que chegavam aos portos mundo afora.

Pode parecer uma surpresa, mas a história da saúde global está direta e indiretamente ligada ao Brasil. Em 1870, o país viveu uma grande epidemia de febre amarela. Nações vizinhas como Paraguai, Uruguai e Argentina também foram afetadas. A doença se espalhou pelo continente, inviabilizando por mais de dez anos o término da megaobra do canal do Panamá. Junto com a malária, a febre amarela matou mais de 20 mil trabalhadores, o que fez com que a França abandonasse o projeto. Os Estados Unidos, no entanto, tinham grande interesse na sua finalização. Foi nesse contexto que a região das Américas criou, em 1902, o primeiro escritório sanitário do mundo que viria, depois, a se chamar Organização Pan-Americana da Saúde, a Opas.

Mais tarde, o Brasil exerceria protagonismo nessa história. Em 1945, a delegação do país se uniu aos representantes da China para propor a criação de uma organização internacional para a saúde no âmbito da nascente Organização das Nações Unidas (ONU). “Depois da Segunda Guerra Mundial, crescia o sentimento de que para fortalecer a solidariedade internacional sobre um tema fundamental – a saúde – era preciso integrar as diferentes instituições que atuavam na área. Com isso, se procurava assegurar que haveria capacidade de resposta às emergências sanitárias, mas também se queria garantir um certo padrão para as políticas de saúde, através de uma instituição que tivesse capacidade técnica para traçar linhas e diretrizes válidas para os governos de todo mundo”, contextualiza Susana Barria, responsável pelo programa de governança global do Movimento Pela Saúde dos Povos (PHM, na sigla em inglês).

No dia 7 de abril de 1948, nascia a Organização Mundial da Saúde (OMS), que incorporou princípios inovadores. Na sua Constituição, saúde é entendida como “o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Além disso, “o mais alto padrão de saúde” é elencado como “um dos direitos fundamentais de todo ser humano”, a ser efetivado sem distinção de raça, religião, ideologia política ou condição econômica e social. Ainda segundo o texto, se um país consegue garantir a promoção e a proteção da saúde de seu povo, isso é um avanço para todos os outros países. Da mesma forma, o progresso desigual no alcance deste objetivo é um perigo não apenas para aquelas nações que ficam para trás, mas para todas. E a saúde é tida como condição fundamental para manter a paz. “A OMS nasce do entendimento de que a saúde é um bem comum. E que garantir saúde é bom não somente para um indivíduo, sua família, comunidade ou sociedade, mas em nível mundial”, diz Susana.

Embora a Organização tenha um único objetivo – o alcance do mais alto nível de saúde possível para todos os povos –, seu mandato é extenso. “A maioria das organizações tem que lidar com uma ou duas atribuições, mas a OMS tem 22 funções”, pontua Andrew Harmer, professor de política global da saúde na Universidade de Londres. Isso porque a OMS tem a autoridade para dirigir e coordenar o trabalho em saúde em âmbito internacional. Quando requisitada, precisa dar assistência a governos no fortalecimento dos serviços de saúde e em caso de emergências sanitárias. Também deve trabalhar para a erradicação de epidemias, endemias e doenças. E promover muita cooperação, seja com outras agências da ONU em um número grande de temas – moradia, saneamento, economia e trabalho são alguns deles –, seja com entidades científicas. Também cabe à Organização propor convenções, acordos e regulações na área da saúde. E fazer recomendações. Existe um trabalho intenso de padronização: de nomenclatura de doenças, práticas de saúde pública, procedimentos de diagnóstico, alimentos, produtos biológicos e farmacêuticos. “A OMS guia como as políticas de saúde devem ser elaboradas. E é uma organização que baseia muito do seu trabalho nas recomendações de expertise. Ela tem o poder de reunir diferentes opiniões e buscar consenso sobre questões que são importantes globalmente”, explica Mariângela Simões, diretora-geral assistente para pré-qualificação e avaliação tecnológica da Organização Mundial da Saúde. E pondera: “Está escrito na Constituição da OMS o que ela deve fazer. Mas quem determina o que a Organização vai fazer é a Assembleia”.

A mais alta instância

A OMS é composta por três instâncias. O Secretariado é o braço operacional da Organização, encabeçado por um diretor-geral eleito a cada cinco anos. No âmbito da governança, há o Comitê Executivo, composto por 34 representantes dos países que integram a OMS. A esse grupo, que se reúne duas vezes por ano, cabe decidir os temas que serão deliberados na instância máxima de governo da Organização: a Assembleia Mundial da Saúde (AMS). Em junho de 1948, aconteceu a primeira Assembleia. Na época, 48 países faziam parte da OMS; 46 participaram do evento. Hoje, são 194 Estados-membros, divididos administrativamente em seis regiões sanitárias: África, Américas, Europa, Mediterrâneo Oriental, Sudeste da Ásia e Pacífico Ocidental. A OMS tem mais de sete mil funcionários, espalhados por 150 escritórios nacionais.

“A Organização Mundial de Saúde é um organismo multilateral. Todos os países têm voz. Essa é uma das fortalezas, mas também é uma de suas fraquezas. Um tema importante pode não passar porque um país tem opinião contrária. Então os temas vão e voltam”, observa Mariângela. Um exemplo disso é a destruição dos estoques do vírus da varíola, um dos assuntos mais antigos da agenda da Assembleia, debatido pela primeira vez em 1980, quando a doença foi oficialmente erradicada.

Em 2019, entre os dias 20 e 28 de maio, aconteceu a 72ª AMS. E, novamente, o tema esteve em pauta. Hoje, dois laboratórios públicos possuem amostras do vírus: o centro de biotecnologia VECTOR, na Rússia, e o centro de controle de doenças (CDC), nos Estados Unidos.  Acontece que todos os países se comprometeram a destruir os estoques depois que o vírus tivesse seu genoma sequenciado. Isso aconteceu em 1996, mas EUA e Rússia não cumpriram o combinado. O prazo foi estendido para 1999. Mas, de novo, os dois países se recusaram a implementar a resolução, argumentando que as amostras eram necessárias para aprofundar pesquisas. Um comitê especial foi criado para supervisionar essa pesquisa e, mais tarde, um comitê independente surgiu para reavaliar todo o trabalho. Em 2013, novos diagnósticos haviam sido criados, uma nova geração de vacinas desenvolvida e o comitê independente concluiu que não havia mais nenhum propósito de saúde pública para a permanência dos estoques – que nem assim foram destruídos, pois novos argumentos foram apresentados, desta vez sobre a ameaça de as moléculas do vírus terem sido sintetizadas, como forma de criar uma arma biológica. Não faltam países que apontem para o fato de que se os estoques tivessem sido destruídos lá atrás, tal ameaça não teria surgido. Mas, até agora, esses argumentos têm sido apresentados sem nenhum efeito prático. 

A geopolítica também se manifesta de outras formas. “Às vezes – várias vezes – por interesses comerciais”, pontua Mariângela. E 2019 é um ótimo exemplo desse tipo de embate. Em fevereiro, a Itália apresentou uma proposta de resolução sobre transparência no mercado de medicamentos, vacinas e tecnologias de saúde. Uma das ideias centrais era obrigar as empresas a abrirem todos os custos ao longo da cadeia de produção, o que inclui estágios como a pesquisa e o desenvolvimento, os testes clínicos e o marketing. Com isso, seria possível saber o quanto do preço final desses produtos tem a ver com a fase de pesquisa (como advoga a indústria) ou com a publicidade e a maximização dos lucros destinados aos acionistas dessas empresas (como argumentam especialistas no assunto).

A proposta foi copatrocinada por outros países europeus – Espanha e Portugal – e rapidamente se tornou o tema mais quente da agenda, mesmo antes de a Assembleia começar. Nos dois encontros que precederam a 72a AMS, ficou claro que países que sediam as grandes farmacêuticas, como Alemanha, França, Reino Unido e Suíça, usariam todos os meios diplomáticos necessários para impedir o tipo de transparência que a resolução almejava. A delegação do Reino Unido fez uma proposta de edição para suprimir no texto qualquer menção a “preços altos”, basicamente o cerne do problema. O debate entre as delegações, feito a portas fechadas, se prolongou por todo o evento. Mais países se afiliaram à proposta, caso do Brasil.

Mesmo assim, a certa altura, não havia certeza se a resolução chegaria a ser discutida formalmente pela Assembleia. E uma nuvem de apreensão pairou sobre o Palácio das Nações, onde o evento é realizado na cidade de Genebra na Suíça, quando, nos bastidores, surgiram indicativos de que o texto poderia ser completamente descaracterizado. O risco era que o momento político gerado pela resolução se revelasse um anticlímax, já que uma decisão ruim poderia travar futuras discussões e, consequentemente, mais avanços. No último momento, a resolução foi apresentada para votação e passou. Mas o texto aprovado está longe de ser tão ambicioso quanto o original: toda a parte da transparência na cadeia produtiva foi retirada.

Ascensão e queda

Não falta quem considere que o ápice das ambições políticas da OMS aconteceu muito tempo atrás. Se o ideal da ‘saúde para todos’ está inscrito na própria Constituição da Organização, nunca essa bandeira esteve tão em evidência quanto no final dos anos 70. Sob a liderança de Halfdan Mahler – considerado por muitos o mais hábil diretor-geral que a OMS já teve –, em 1978 aconteceu no Cazaquistão, então república da União Soviética, a Conferência Internacional sobre Atenção Primária em Saúde. De lá, saiu a famosa Declaração de Alma-Ata com o lema “saúde para todos no ano 2000”. Naquele momento, a OMS apostava numa meta para que o seu principal objetivo se concretizasse. E fazia isso usando uma linguagem contundente.

“A brutal iniquidade existente na saúde dos povos, particularmente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como no interior dos próprios países, é política, social e economicamente inaceitável e constitui, por isso, objeto da preocupação comum de todos os países”, diz o documento, que defendia a instauração de uma “nova ordem econômica mundial” como alicerce fundamental para que a ‘saúde para todos’ se concretizasse.

“Era um contexto muito particular. Depois das lutas anticoloniais, os governos estão buscando ter uma relação diferente entre si durante a Guerra Fria. E um dos temas principais é a nova ordem econômica mundial. Esse tipo de entendimento está relacionado a um desejo de transformar as relações de poder. E as Nações Unidas são vistas como um espaço em que se pode neutralizar as diferenças porque todo mundo tem um voto. Um país pequeno tem o mesmo voto que um país imenso. Um país com PIB enorme tem o mesmo voto do menor PIB”, analisa Susana Barria, para quem a Declaração de Alma-Ata acabou se tornando símbolo do potencial do Sistema ONU e é uma inspiração até hoje. “O texto relaciona o direito humano à saúde ao surgimento dessa nova ordem econômica. Coloca no centro as necessidades das pessoas, é contra a mercantilização da saúde”, diz.

A reação não demoraria a vir. Se Alma-Ata falava da importância de sistemas de saúde fortes alicerçados em uma atenção primária à saúde robusta que, através da prevenção e da promoção, poderia evitar uma série de doenças, na década seguinte predominou uma lógica distinta, com a chamada focalização da atenção primária e a abordagem vertical voltada à resposta de determinadas doenças. Entram em cena outros atores. “A partir de 1980, o Banco Mundial passou a atuar na saúde. Em 1994, produziu um relatório muito influente chamado ‘Investindo em saúde’, que alçou o setor privado ao primeiro plano, moldando a maneira como a saúde seria compreendida dali em diante”, situa Andrew Harmer.

Algum tempo depois, uma série de iniciativas ligadas a empresários se multiplicaram. Em 2000, Bill Gates, que na época era o homem mais rico do mundo, afastou-se da Microsoft e estabeleceu uma fundação filantrópica chamada Bill & Melinda Gates. Seu interesse na saúde não se resumiu à própria iniciativa e, no mesmo ano, ele fez uma doação de 750 milhões de dólares a um fundo para vacinas que, pouco tempo depois, atrairia outros doadores e desaguaria na criação da Aliança Global para Vacinas e Imunizações (GAVI, na sigla em inglês). Também no ano 2000 foi criado o Fundo Global para AIDS, tuberculose e malária. “Inicialmente, a ideia era que fosse um fundo global para a saúde muito mais amplo. Mas isso não aconteceu”, lembra Harmer. O foco em uma única doença também mobilizou a Presidência dos Estados Unidos a criar, em 2003, o multibilionário PEPFAR [The United States President´s Emergency Plan for AIDs Relief]. E esses são apenas alguns exemplos.

“E a pergunta passou a ser: qual a relevância política da OMS se temos essas outras iniciativas muito importantes?”, diz

Harmer, para quem a Organização precisou colocar em marcha uma estratégia para defender seu espaço em meio a uma arquitetura da governança global da saúde cada vez mais complexa. Sob a liderança da ex-primeira-ministra da Noruega,  Gro Brundtland, que dirigiu a OMS entre 1998 e 2003, a Organização adotou o modelo das parcerias com esses atores em ascensão. “Foi uma decisão essencialmente política. Brundtland temia que a OMS fosse marginalizada. E decidiu situá-la no centro de todas essas parcerias – abrigando, inclusive, várias delas em sua sede, em Genebra”, nota.

Ao mesmo tempo, os anos 1990 marcam o início de uma grave crise de financiamento que se arrasta até hoje. “Os países basicamente concordaram em congelar suas contribuições à OMS. A princípio não completamente, já que os valores eram corrigidos pela inflação. Mas isso foi interrompido também. Então, na verdade, as contribuições diminuíram porque não acompanharam a inflação”, explica Harmer.

De acordo com os entrevistados da Revista Poli (EPSJV), o argumento utilizado pelos Estados-membros é o de que a OMS não é eficiente, nem eficaz. Ou seja, o dinheiro que os países estão ‘investindo’ na Organização não estaria tendo retorno. Por essa lógica, a Organização deveria fazer mais com menos. “Há uma intenção política por trás desse discurso: dirigir a atenção e a narrativa para longe do problema central de que a OMS precisa de mais recursos para cumprir o seu papel de ser um organismo que cria e pode implementar políticas globais de saúde”, analisa Susana. “Vemos uma busca por deficiências – que é a terminologia do mercado – e o corte do financiamento de áreas com prioridade baixa. O problema é definir quais áreas poderiam ser categorizadas como de baixa prioridade, pois pode-se argumentar que as questões de saúde que mais importam para as pessoas não necessariamente são aquelas mais importantes para os doadores”, sublinha, por sua vez, Harmer.
Isso porque a lacuna de financiamento dos Estados-membros passou a ser preenchida por contribuições voluntárias, feitas tanto por países quanto por entidades filantrópicas e empresas. Em 2017, a contribuição dada pela Fundação Bill & Melinda Gates representou nada menos que 13% do orçamento geral da OMS. Para se ter uma ideia da guinada, nos anos 1950 e 1960, o orçamento da OMS era composto por 70% de contribuições dos Estados-membros e 30% de contribuições voluntárias. Atualmente, essa razão foi invertida.

O problema das contribuições voluntárias é que, em vários casos, os doadores determinam exatamente onde e como o recurso será aplicado. E isso tem levantado uma série de preocupações acerca do direcionamento da atuação da OMS. “O que está se tornando claro é que o dinheiro de Gates não se aplica somente à OMS, mas a várias organizações. Todos os atores que Gates financia estão se tornando parte da ‘família’ da OMS. Indiretamente Gates está em todo lugar. E traz consigo uma perspectiva e uma mentalidade do setor privado. Ele interpreta a saúde em termos de resultados e impacto porque é orientado pelo dinheiro. O único jeito que ele entende sucesso é em uma planilha, onde se demonstra uma redução ou aumento em alguma unidade ou valor. Mas essa não é a maneira como as sociedades progridem. Há muitos desafios estruturais e sistêmicos, nenhum dos quais pode ser resolvido por Gates e pela maneira como ele opera. Ele provavelmente é parte do problema”, critica Harmer.

“Acho que tem muita fantasia sobre isso, sabe?”, contesta Mariângela Simões, que dá como exemplo um plano de ação voltado para a vigilância de medicamentos novos após sua entrada no mercado. “Os financiadores têm interesse nessa agenda regulatória, e nós também. Isso faz parte de um pacote do que a OMS quer fazer – porque nunca é uma coisa que não se quer fazer. Um sistema que dê conta disso é bom para o mundo. E se tem o dinheiro da [fundação] Gates, que venha. Mas as coisas têm que se encontrar. Você não pega dinheiro que não seja para uma área interessante”, pondera.

“Nossa nova abordagem em relação às parcerias está nos ajudando a deixarmos de ser uma organização avessa ao risco para uma que maneja os riscos. Isso não é um slogan, é uma mudança em curso. Já estamos nos engajando de uma maneira muito mais proativa com as organizações da sociedade civil e com o setor privado”, disse o diretor-geral Tedros Adhanom Ghebreyesus na abertura da 72ª AMS. Também para Mariângela Simões, as regras da Organização estão funcionando para evitar problemas. “A OMS tem um sistema de firewall muito grande para a questão de conflitos de interesses”, defende.

Ela se refere a um mecanismo de engajamento com atores não estatais conhecido pela sigla em inglês Fensa. Contudo, o texto aprovado em 2016 já está sendo desrespeitado, na avaliação de alguns analistas. Isso porque o Fensa proíbe exibições comerciais durante eventos da OMS. Mas, na Assembleia Mundial de Saúde deste ano, o Unaids, programa das Nações Unidas para AIDS, lançou uma exibição chamada ‘Health Innovation Exchange’. Lá, dentre as 24 ‘inovações’ à mostra, havia propaganda de um programa de diagnóstico criado pela farmacêutica Roche, propaganda de uma seringa de agulha retrátil automática, propaganda de dispositivo usado em cirurgias de circuncisão... O médico Gargeya Telakapalli, que integra o secretariado global do Movimento pela Saúde dos Povos, acredita que a exibição violou o Fensa. “Isso é um marco. Conversei com um oficial muito antigo da OMS e ele me disse que nunca pensou que algo assim pudesse acontecer. E, bom, agora aconteceu. Era uma clara violação do Fensa”. Tanto o movimento, quanto a organização Third World Network (TWN) pediram explicações. “Ao menos, esperávamos que a OMS e a Unaids apresentassem algum tipo de resposta ou justificativa, o que não aconteceu”, lamenta.   

Em janeiro de 2019, a relação de atores não estatais que mantinham relações formais com a OMS somava 217 organizações, entre federações internacionais que representam a indústria farmacêutica, sociedades e associações de profissionais de saúde e especialidades médicas, entidades de pacientes e de estudantes, grandes fundações filantrópicas e organizações da sociedade civil. “Mesclou-se o que é academia, o que é sociedade civil, o que são doadores e o que é o setor privado – atores que não têm nem os mesmos papéis, nem os mesmos interesses. Colocar todos no mesmo balaio é uma estratégia para dar legitimidade e garantir espaços formais para que o setor privado possa colaborar com a OMS. E isso está acontecendo em outros organismos da ONU”, acredita Susana.

Para Andrew Harmer, trata-se de um ambiente crescentemente biomédico, orientado por inovação, coleta de dados e pela lógica do custo-benefício. A consequência, segundo ele, é a emergência de uma “monocultura” sobre o que é saúde e como se resolvem os problemas de saúde, em meio a qual fica cada vez mais difícil que as vozes alternativas sejam ouvidas.

Mas elas estão lá. Há dúvidas, porém, sobre a efetividade do engajamento da sociedade civil na Assembleia e na OMS hoje. Para Maurício Torres-Tovar, da Associação Latino-Americana de Medicina Social da Saúde (Alames), há problemas. “Marcamos presença e tentamos incidir. Mas nossa capacidade é muito menor do que a da indústria farmacêutica, por exemplo”. Torres-Tovar aponta que a perda de centralidade da própria OMS limitou a ambição das propostas do organismo. E dá como exemplo a cobertura universal de saúde, principal bandeira da Organização hoje, com sua meta do ‘bilhão-triplo’: um bilhão de pessoas a mais com cobertura universal de saúde, um bilhão a mais com melhor proteção contra emergências sanitárias e um bilhão a mais desfrutando de melhor saúde e bem-estar. “Esta grande política, que se impõe hoje no mundo, é uma ideia que circula há vários anos, propalada pelo Banco Mundial, pela Fundação Rockfeller e outras entidades. A OMS seguiu essa pauta. Foi carreada”, analisa ele.

Em contraposição, Alma-Ata almejava mais. “Hoje, é revolucionário pedir saúde para todos”, compara Susana. Para Andrew Harmer, mesmo com todas as dificuldades, a OMS poderia tomar a dianteira em temas difíceis, como o aquecimento global. “Eu gostaria que ela fosse mais ambiciosa na mensagem que passa a seus Estados-membros e na visibilidade que dá a certas questões da saúde, particularmente a questão climática”, cita. E aposta: “Há margem para um pouco mais de ousadia”.