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Publicado em: 17/09/2018

Luiz Augusto Fachinni: "A Declaração de Alma-Ata se revestiu de uma relevância muito importante em vários contextos"

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Em setembro de 1978, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Alma-Ata, na República do Cazaquistão, expressava a “necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo”. A Declaração de Alma Ata – documento síntese desse encontro – afirmava a partir de dez pontos que os cuidados primários de saúde precisavam ser desenvolvidos e aplicados em todo o mundo com urgência, particularmente nos países em desenvolvimento. Naquele momento, conforme defesa feita pela própria OMS, a saúde era entendida como “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”. Por conta dos quarenta anos de Alma Ata, completados neste mês de setembro de 2018, o Portal EPSJV/Fiocruz foi ouvir o professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador da Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde (Rede APS) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Luiz Augusto Fachinni, que fez um balanço das quatro décadas do documento que foi um marco para o mundo. Nesta entrevista, Fachinni fala ainda sobre a Conferência Global da OMS sobre Atenção Primária em Saúde, marcada para outubro em Astana, no Cazaquistão, quando será apresentada uma nova Declaração sobre Atenção Primária à Saúde, analisando até onde os princípios apresentados pelo documento se aproximam ou se distanciam do texto de 1978. A Declaração de Astana vem apresentar os desafios para o avanço da cobertura universal de saúde e do desenvolvimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Por que Alma Ata foi um marco para o mundo? Quais foram as principais contribuições de Alma Ata para a concepção de saúde e a organização de sistemas de saúde no mundo?  

A declaração de Alma-Ata se revestiu de uma relevância muito importante em vários contextos, âmbitos e dimensões. Anteriormente à Alma-Ata, existiam experiências isoladas de atenção primária à saúde que estavam muito vinculadas a duas ordens de desenvolvimento. Nos sistemas de saúde que estavam se organizando, especialmente no sistema de saúde inglês, por exemplo, destacavam-se algumas dessas experiências, mas a atenção primária não era o elemento central, pelo menos não da maneira como a gente compreende hoje a atenção primária. Entre 1959 e 60, tivemos a Revolução Cubana. Foi quando, de fato, se pensou um sistema com serviços de saúde organizados próximos ao local de moradia, das residências das pessoas e orientado para o atendimento. Havia um movimento no mundo de iniciativas nacionais e em contextos particulares. Mas não havia uma definição de um modelo de atenção primária à saúde. Teremos referências do início do século 20, em 1920, com o Relatório Dawson, na Inglaterra. Ali, o médico da família britânica Lord Dawson já havia feito referência a uma organização de sistemas de saúde baseada em uma rede capilarizada de serviços que começavam com a atenção primária. A Inglaterra deixou isso de lado, por conta de enfrentamentos políticos, e essa ideia de atenção primária se perdeu. Alma-Ata foi, então, o primeiro destaque dado à atenção primária em termos globais, recuperando experiências e reflexões teóricas. Muitas dessas experiências foram desenvolvidas, pontualmente, em vários países da África, na Ásia e, até mesmo, na América Latina, com a participação de profissionais de saúde e, particularmente, de médicos vinculados às igrejas católicas e protestantes, bastante envolvidas por ocasião da Reforma Luterana. Havia uma concepção de missionário, de dedicação religiosa filantrópica em relação a essas iniciativas pontuais de atenção primária à saúde ao longo de todo século 20. Quando então ocorre a Conferência de Alma-Ata, por uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde em parceria com a Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], a proposta de atenção primária ganha destaque e relevância, pois explicita um modelo altamente abrangente, uma ideia de saúde para todos. Portanto, conforme anunciado em sua chamada, Alma Ata define a atenção primária como estratégia a ser ofertada a toda a população. Traz a ideia de ideia de universalidade, e propõe isso no contexto de um sistema de saúde. A noção de sistema de saúde é articulada nesse encontro. Alma Ata defende um modelo que em inglês chamamos de compliance, ou seja, um modelo de integralidade, que abrange o conjunto das necessidades de saúde da população. O documento fala em articulações intersetoriais, fortalecendo as ideias de nutrição e alimentação, como também de participação comunitária popular e de esforços de educação.  Alma Ata é uma recomendação de dois organismos internacionais, OMS e Unicef, e assinada por uma grande quantidade de países que concordavam com a proposta.

Havia consenso em torno dos marcos referenciais da declaração de Alma Ata? Se havia divergências, quais eram as principais e quem representava cada posição?

Assim que Alma Ata foi apresentada, começou o debate internacional em torno da sua implementação. Ela não foi censurada em nenhum momento, mas ela foi contraposta. Houve imediatamente uma contraposição àquilo que tinha sido aprovado em Alma-Ata por iniciativa da OMS e da Unicef. Em 1980, depois de dois anos do encontro, o Banco Mundial e o próprio Unicef fizeram uma proposta alternativa à Alma-Ata, sob os argumentos de que faltaria dinheiro, vontade política e infraestrutura. Então, apresentaram um pacote de APS seletiva, com recortes mais restritos: a Estratégia GOBI (sigla em inglês para indicar monitoração do crescimento, Reidratação Oral, Aleitamento Materno e Imunizações). Era uma APS centrada fundamentalmente na atenção à saúde da criança e à mulher. O foco na reidratação oral, por exemplo, era porque na época a diarreia era uma das causas mais impressionantes de mortalidade de crianças no período pós-neonatal. A ênfase no aleitamento materno era estratégico para garantir melhores condições de nutrição e imunidade às crianças. E o foco na imunização era forma de expandir toda a questão vinculada com a proteção vacinal para doenças da época, como sarampo, difteria, tétano, tuberculose, poliomielite etc. Tinham outras recomendações genéricas: educação das mulheres, nascimento das crianças, suplementação alimentar etc. A Estratégia GOBI, de uma APS seletiva, foi a primeira na contraposição à Alma Ata.  E boa parte dos países passaram a seguir as receitas do Banco Mundial, desenvolvendo não apenas uma lógica de uma atenção primária seletiva e recortada, com foco na saúde materno-infantil, como também passaram a pensar sistemas de saúde com os mesmos recortes.

No Brasil, havia uma ênfase diferente disso, mesmo antes do Sistema Único de Saúde [SUS]. O movimento da Reforma Sanitária brasileira já propunha a ideia de um sistema universal de saúde, de uma APS forte, abrangente e integral, e isso foi se materializando com experiências que iam surgindo em vários lugares: no interior de Minas Gerais, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em muitos lugares do Nordeste, enfim, em 1978, quando a Alma-Ata define a sua proposta, já havia várias experiências coincidentes com essa leitura em desenvolvimento no Brasil. Eu me lembro de que o Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas foi criado no ano de 1976.  Quer dizer, dois anos antes de Alma-Ata, e nessa oportunidade já foi criado junto ao departamento uma unidade básica de saúde, com características de uma atenção primária universal. Todo mundo podia ser atendido lá, com território definido, um atendimento gratuito, porque ele era oferecido por professores e alunos da universidade. Quando o SUS é constituído formalmente em 1988, portanto dez anos depois de Alma-Ata, essa noção de que teríamos atenção primária universal e integral já estava totalmente sedimentada.  Nós fomos uma experiência dissonante desse contexto. Conseguimos construir um sistema universal, financiado com recursos pagos pela população através dos seus impostos, integral desde a vacina até os transplantes e todas as ações de saúde, e ficar ao longo de todo esse tempo relativamente protegidos desses pacotes de serviços como os oferecidos pelo Banco Mundial.

O SUS completa 30 anos quando a declaração de Alma Ata completa 40. Qual a influência de Alma Ata para a construção de sistemas universais de saúde, como o do Brasil?

Com certeza, ela dá um respaldo, ela dá uma proposta de modelo, ela define características fundamentais para o desenvolvimento da expansão dos sistemas universais.

Alma Ata trouxe alguma referência para se pensar a formação e a gestão do trabalho nos sistemas de saúde?

Ela foi inspiradora em todos os sentidos, pela sua grande abrangência, especialmente para países que não tinham nada. Para fazer atenção primária à saúde, temos que formar profissionais e equipes. Então nas universidades, os currículos de atenção primária à saúde, começaram a se desenvolver. Os departamentos de Medicina Social dessas universidades, com Alma Ata, começam a desenvolver conteúdos relativos às ações de atendimento primário à saúde e de formação dos alunos. Portarias, diretrizes e normas passaram a ser implementadas. As políticas de saúde como entendemos fizeram parte de um contexto de estímulos para a educação, a pesquisa, a prestação de serviços, bem como para a organização de sistema. Alma-Ata foi inspiradora para a Estratégia Saúde da Família, que em boa medida pode ser considerada uma das experiências mais bem sucedidas. No Brasil, a Reforma Sanitária partiu de dentro da academia, foram profissionais de saúde vinculados às exigências daquele momento, aos departamentos de Medicina Preventiva, Enfermagem e todas as áreas que estavam se mobilizando por um sistema público universal de saúde. A produção de conhecimento e a formação profissional para o SUS e para a atenção primária sempre tiveram uma vinculação com as universidades e a academia, e isso se aprofundou nos últimos anos com a criação da UNA-SUS [Universidade Aberta do SUS], que são universidades que formam uma rede para a formação profissional em saúde.

Em outubro deste ano, 40 anos depois, haverá uma conferência global em Astana, Cazaquistão, com o objetivo de apresentar uma nova declaração sobre Atenção Primária à Saúde. Será uma superação de Alma Ata? A declaração de Alma Ata precisa ser renovada, atualizada? Por quê? E em que termos?

Depois de Alma-Ata, nunca mais a Organização Mundial de Saúde conseguiu fazer uma formulação de defesa dos direitos à saúde que tivesse a abrangência do documento de 1978, que tivesse essa característica exemplar para os países, com ênfase na atenção primária. Do ponto de vista das políticas globais, a hegemonia passa a ser do Banco Mundial, e a Organização Mundial da Saúde acabou se fragilizando, ficando à margem desse processo.

Algo que tem sido apontado como novidade nesta conferência em relação aos princípios defendidos em Alma Ata é a defesa da cobertura universal de saúde. Explica para nós o que é a cobertura universal de saúde, qual a diferença entre essa perspectiva e a defesa de sistemas universais. Essa referência (da cobertura universal) é, de fato, distinta do que foi defendido em Alma Ata? Qual a origem dessa perspectiva? E a que interesses ela atende?

Eu participei de várias assembleias mundiais de saúde nos últimos anos. Isso foi uma tentativa da Organização Mundial de Saúde de retomar um protagonismo nas recomendações de saúde referentes àquela antiga noção de saúde para todos no ano 2000, de garantia de acesso à população aos serviços de saúde, tendo a atenção primária à saúde como elemento central crucial do acesso da população. Só que, infelizmente, a proposta da OMS, essa proposta de cobertura universal foi ganhando outras configurações. Por que essa proposta de cobertura universal da OMS fica muito aquém de Alma-Ata? Porque ela é uma ideia de que as pessoas têm direito à saúde e precisam ter cobertura de saúde, mas quando fala cobertura universal de saúde, não fala cobertura integral de saúde. Cobertura de todas as necessidades de saúde dos indivíduos passa a ser um debate sobre o que cada país tem capacidade de oferecer. Por exemplo, o sistema de saúde inglês oferece tudo para todos, bem como o sistema canadense. A mesma ideia valeu para o sistema de saúde brasileiro. Mas se você é um país da África, que tem um sistema muito fragmentado e desorganizado, só tem oportunidade de oferecer, por exemplo, reidratação oral e algum tipo de vacina, a OMS já acha que isso está muito bom e que evidentemente é melhor isso que nada. A gente até concorda que é melhor isso que nada, mas isso não é garantir universalidade das ações de saúde. Ainda que seja importante que a Organização Mundial da Saúde tenha protagonismo global, internacional no âmbito das questões de saúde, ela acaba validando ideias de atenção primária à saúde seletiva. E o pior que mobiliza para isso quaisquer tipos de recursos e de capacidade instalada, privatizando serviços, estabelecendo parcerias público-privadas, não se menciona mais a palavra sistemas públicos de saúde, muito menos sistemas universais de saúde ou atenção integral às necessidades de saúde da população. Face ao grande avanço das propostas neoliberais na economia mundial, a Organização Mundial de Saúde não conseguiu um consenso internacional em favor da expansão dos serviços de atenção primária à saúde, apenas conseguiu avançar com uma estratégia reduzida, recortada e muito seletiva. Não se trata, nesse caso, necessariamente de uma defesa de privatização do sistema de saúde, mas há uma ênfase nas parcerias público-privadas, em modelos que acabam levando a co-pagamento e co-financiamento das ações de saúde, por pessoas usuárias do serviço.

Outra crítica que tem sido ventilada é o fato de o documento (ainda inicial, não finalizado) da conferência de Astana naturalizar, de certa forma, os Objetivos do Desenvolvimento sustentável (ODS) como marcos referenciais para se pensar a saúde e a Atenção Primária. Qual a sua avaliação sobre isso?

Bom, eu não vejo como os objetivos sustentáveis sejam uma barreira ou uma limitação para o desenvolvimento de sistemas universais de saúde. Acho que as declarações pegam questões federais em relação à saúde, diferente das metas anteriores do desenvolvimento, que tinham aspectos específicos, como diminuição da mortalidade infantil, diminuição da mortalidade materna, redução da pobreza. Elas ficaram mais genéricas, perderam especificidade de alguma medida, mas não as vejo como elementos que estariam negando ou fragilizando propostas de universalização de sistemas universais integrais.

Minha preocupação maior é a coincidência, a sintonia, por exemplo, dessa proposta de cobertura universal de saúde com esses recortes todos que a gente conversou da OMS e a proposta do Banco Mundial para a reforma do sistema único de saúde, por exemplo. O Banco Mundial acabou de lançar uma proposta a respeito de reforma do SUS. Eu receio que seja por conta do período eleitoral que teremos no Brasil.

A meu ver, a leitura que a proposta do Banco Mundial faz do SUS é muito didática, muito pedagógica para a gente imaginar qual é a intervenção do Banco Mundial nos sistemas de saúde que se sintam, digamos, suscetíveis a uma integração do Banco Mundial. Porque a gente não vai ter nenhuma repercussão no sistema de saúde inglês evidentemente, no sistema de saúde da Espanha, de Portugal, ou sei lá, do Canadá. Mas pode sim ter uma repercussão muito forte no sistema de saúde do Brasil, dada a fragilidade internacional em que o país que se encontra hoje.

O financiamento do SUS é uma nota grave para a acessibilidade mais plena do sistema. E, ainda assim, a gente teve capacidade de alcançar uma cobertura de mais de 65% da população só com a Saúde da Família. A gente teve capacidade de articular toda uma rede de saúde complexa com todas as dificuldades, apesar disso, em âmbito especializado, hospitalar, da alta complexidade, de transplante, de tratamento de câncer, de tudo o que for possível. E isso com uma proporção muito pequena de recursos públicos em relação ao PIB.

E o Banco Mundial, ao analisar isso, diz que apesar de alguns avanços, o Brasil luta para chegar a um bom equilíbrio e para ter maior eficiência na sua ação. E dito isso, passa de imediato para enfrentar os desafios para a consolidação do SUS que exigem, segundo o banco, reforma dos modelos de atenção. Reforma dos modelos de atenção, do financiamento da gestão. Bom, quando o Banco Mundial faz isso, ele faz na perspectiva de dizer que o que é eficiente é o sistema privado. O que é ineficiente é o sistema público. Logo, se o SUS precisa melhorar a sua eficiência, o que poderíamos fazer? Privatizar o SUS. Privatizar o SUS de que maneira? Bom, privatizar o SUS de maneira a fazer com que os serviços de saúde alcancem maior eficiência. O documento do Banco Mundial faz uma análise que, a meu ver, é extremamente curiosa, sobre a eficiência dos níveis de atenção do SUS. E ele identifica a atenção básica como o nível mais eficiente do SUS, inclusive nos lugares mais pobres. Então, na leitura do banco, a atenção primária alcançou uma eficiência de mais de 60%, e foi especialmente eficiente o seu desempenho nas regiões norte e Nordeste. E os outros níveis? Os níveis especializado, hospitalar, quanto maior a sua complexidade, menor a sua eficiência. Bom, aí tem duas questões que emergem esse debate. Primeiro, se a atenção básica é o único espaço do SUS que é realmente público, apesar de algumas iniciativas de privatização como no Rio, em São Paulo e em Santos, então o que é mais eficiente no SUS é justamente a parte públic, e não a parte privada.

Então, o Banco Mundial, sem prestar atenção - de propósito, ou por equívoco - deixa de lado os próprios dados e passa a recomendar, como a sua grande estratégia, a privatização geral do sistema. De que maneira? Organizando redes compostas por prestadores autônomos. E aí ele usa uma expressão muito curiosa: semiautônomos. Eu não sei o que poderia ser semiautônomo. Seriam as OS, que são ocaminho da privatização, porque você pega o recurso público e põe na mão dessas organizações sociais para elas fazerem não apenas a parte da gestão, mas inclusive a parte da prestação, da oferta do serviço. E aí se supõe que milhares e milhares de OS em todo o Brasil, articuladas desde a atenção primária até a alta complexidade por redes de cuidado - saúde da mulher, saúde do idoso, de atenção aos crônicos, etc. - fariam disso um sistema universal de saúde mais eficiente.

Eu acho que seria exatamente o contrário. Então, essa é uma grave contradição. E essa leitura de cobertura universal que perpassa os documentos da OMS agora, incluindo o da conferência de Astana, acaba tendo uma sintonia com isso. Eu não estou acusando a OMS de vim querer privatizar o SUS. É o Banco Mundial que está em sintonia com toda essa noção de cobertura Universal - inclusive ele fala isso claramente nesse documento do Brasil, em que propõe a privatização. Isso é extremamente preocupante.

Seja na sua gestão, seja no seu financiamento, seja na concepção de saúde, a OMS sofreu mudanças que mereçam destaque ao longo desses 40 anos? Há diferenças perceptíveis na perspectiva de saúde global nesse intervalo de tempo? Quais e por quê?

Eu acho que Alma-Ata foi o marco do ponto de vista de um grande avanço, daquele acúmulo de forças que a OMS foi tendo ao longo do tempo. Toda a interação com os países e as suas experiências, as suas inovações foram um grande marco de avanço, justamente sinalizando essas duas questões: universalidade, saúde para todos, portanto, e integralidade, para todas as necessidades de saúde da população. E depois disso, esses dois conceitos, esses dois princípios organizadores e norteadores do sistema de saúde foram perdendo forças e deixando de ter visibilidade, centralidade, no palco das discussões, das ações de saúde no âmbito global. E aí o Banco Mundial passou a lançar de modo regular relatórios em saúde do mundo, fazendo as suas interpretações e colocando a sua prescrição. Via de regra, o que o Banco Mundial falava? Saúde seletiva, atenção à rede seletiva, saúde com ênfase na iniciativa privada. Sempre o prestador privado como um elemento para fazer a extensão de cobertura. E eu acho que a OMS finalmente acaba refletindo isso, não sei se voluntariamente ou involuntariamente. A OMS é palco do debate político mundial, com todas as dificuldades que existem. Como na ONU, na Unicef, em todos os espaços que são, digamos, palco do debate global internacional.

Então, eu acho que há uma certa incoerência em a gente comemorar 40 anos de Alma-Ata de modo a reforçar uma prescrição que seja mais encolhida, que seja mais tímida, que seja mais recortada, reduzida, do que aquela de Alma-Ata. Eu acho uma lástima. Eu acho que se nós tivermos que pensar em reformas do sistema de saúde no Brasil para alcançar a universalização, para alcançar a integralidade, nós temos que ir por outro caminho.

No caso específico do Brasil, medidas recentes de austeridade e, especificamente, a Emenda Constitucional 95, que congela os gastos públicos federais, têm sido apontadas como um obstáculo à continuidade de um sistema universal de saúde. Um ex-ministro chegou a defender que o SUS não cabia no orçamento. Em que medida essas dificuldades internas se expressam também internacionalmente? Novas concepções de saúde e de Atenção Primária vêm, de alguma forma, responder a esse discurso de restrição orçamentária?

Essa é uma discussão muito importante. O cenário que a gente falou, de desenvolvimento do SUS, com todos os avanços, com melhoria dos indicadores e da situação de saúde, foi no marco do período democrático, ou seja, foi entre 1988, com a Constituição, e 2016. Esse foi o período de avanços. De 2016 para cá, além de ter uma ruptura democrática, a gente teve essa questão da Emenda Constitucional 95, e toda a perda simultânea de direitos sociais. O que o Brasil está apontando em relação a tudo que tem a ver com direitos trabalhistas, com a rede de proteção social expressa no Bolsa Família e em todas as políticas articuladas com isso, enfim, na ideia da seguridade social, como a previdência? O Brasil está justamente em sintonia com o que o Banco Mundial fica recitando como receita global. Se no próximo círculo governamental, em termos de governo federal, houver a continuidade da vigência dessas políticas, não haverá condições de financiar o Sistema Único de Saúde na lógica universal e integral. Então, é possível que o Sistema Único de Saúde acolha essas teses de cobertura universal que hoje a OMS traz e o Banco Mundial reforça, propondo a privatização do SUS de maneira explícita.

Há uma ruptura no SUS, que vai deixar de ter as características que tem de ser um sistema público, gerido pelo Estado com uma oferta de atenção primária para todo mundo, etc. Vai passar a ser um conjunto de pacotes de diversos âmbitos, com participação do setor privado. Então, vamos privatizar a atenção básica, fornecendo os serviços para gestão e operação de organizações sociais [OS] em todo o país. Vamos formando grupos de profissionais que vão operar com serviços: no posto de saúde do meu bairro, eu vou operar junto com alguns colegas, em função de um interesse privado porque eu tenho que acumular dinheiro com isso. E fora que se supõe que essas OS não têm finalidade lucrativa, né? Mas você terá serviço lucrativo, não precisa ter uma organização com fins lucrativos para isso, basta distribuir dinheiro para todo mundo, que passa a ter interesse financeiro naquilo, que você já está operando um processo privativo. Então, esse é o problema, e lógico que isso vai se estender para o conjunto dos sistemas.

Então, eu entendo que nós temos aí um grande desafio que é mudar esse paradigma. Os problemas do Sistema Único de Saúde são muitos, a gente conhece perfeitamente quais são. Temos inclusive receitas, propostas, ações políticas já testadas que dão conta de solucionar e de enfrentar esses problemas. O que a gente precisa não é colocar os recursos públicos à disposição do setor privado. O que a gente tem que fazer é exatamente ao contrário: as parcerias público privadas, elas são muito bem-vindas, desde que coloquem os recursos privados à disposição do público. Temos que pegar tudo o que está na mão do setor privado e, sem estatizar, mantendo como privado, colocá-lo à disposição exclusiva do sistema público. Aí você resolve o problema.

Há ataque sobre os sistemas universais de outros países também?

Tem, claro. A conjuntura é de ataques e têm ocorrido situações tanto de fragilização desses sistemas quanto de resistência. Isso é uma questão muito interessante. Se a gente observar a crise global que se inicia em 2008, que está atingindo principalmente Estados Unidos e Europa, houve situações bastante curiosas. Na Europa, por exemplo, países que já tinham definido sistemas universais públicos de saúde, que já estavam com experiências bem avançadas, tiveram baques bem importantes, como foi o caso de Espanha e Portugal.

O sistema universal público integral da Espanha e de Portugal é posterior à experiência brasileira do SUS. Eles se inspiram não apenas em tudo aquilo que foi feito pela Inglaterra no NHS, mas também no que aconteceu em outros países, inclusive, no Brasil. Tanto Portugal quanto Espanha organizam sistemas muito inteligentes, não são sistemas descentralizados no âmbito municipal, como o brasileiro, o sistema espanhol é um sistema federal operado nas comunidades autônomas de cada região. O sistema português é federal, porque é um país pequeno, e que toma toda uma outra lógica de organização política, administrativa, etc. E o que aconteceu com a crise? Veio a receita neoliberal dos governos conservadores. Retirou-se financiamento da saúde. Com algo semelhante a uma emenda constitucional, o financiamento foi reduzido, passou-se a cobrar de copagamentos, taxa de uso dos usuários, passou-se a tomar uma série de medidas restritivas, que foram muito prejudiciais para o sistema na sua lógica pública universal. Mas felizmente, primeiro em Portugal e agora na Espanha, os governos digamos, solidários com a população - porque acho que a denominação de governos de esquerda é insuficiente -, retomaram o poder e  conseguiram implementar ações que estão protegendo esses sistemas de saúde. Então, eventualmente, no Brasil, possamos resgatar o Sistema Único de Saúde, mas a conjuntura é preocupante.

O Brasil assistiu, recentemente, a uma mudança na sua Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) que foi criticada por muitas instituições do campo da saúde, incluindo a Fiocruz, a Abrasco e o Conselho Nacional de Saúde. É possível relacionar essas mudanças com os marcos de Alma Ata e com os possíveis novos marcos da conferência global de Astana?

Bom, em alguma medida sim, eu acho que tem relação. Porque, no âmbito das políticas e das ações e das intervenções, as coisas estão todas relacionadas, né? Nada acontece por acaso. Mas a questão da PNAB merece uma reflexão mais particular. O grande problema da revisão da PNAB é que ela se deu no contexto de um processo de ruptura democrática. Então, se o contexto fosse de normalidade democrática, independentemente de a hegemonia do governo ser de esquerda ou de direita, o debate teria sido outro.

Um debate que se colocava era sobre os blocos de financiamento, que caracterizavam para o SUS as rubricas em que o dinheiro seria aplicado: o bloco de financiamento da atenção básica, da vigilância sanitária, da saúde do trabalhador, etc. Havia uma discussão entre os secretários municipais de saúde, e até mesmo de modo mais geral no SUS, se isso não seria incoerente com uma lógica de gestão universal integral do sistema, a partir de uma gestão, digamos, solidária, tripartite, entre os gestores municipal, estadual e federal. E, no mundo perfeito, essa articulação tripartite produziria alocação de recursos segundo as necessidades de saúde da população, o perfil da rede de serviço, das áreas com uma prioridade momentânea, da carência maior, etc. Sem essas caixinhas todas carimbadas, você tem grande agilidade, facilidade no uso do dinheiro. Essa é uma argumentação bem razoável. No entanto, no contexto de disputa muito desigual de recursos no interior do sistema de saúde, inclusive com áreas privatizadas que têm grande peso, como média e alta complexidade e atenção hospitalar, há toda uma preocupação de que quando você acaba com essas caixinhas, com essas rubricas de definição de financiamento, você acaba fragilizando o mais fraco. Então, numa escala, por exemplo, em que de cada 100 reais transferido pelo Ministério da Saúde, para os municípios menos de 20 reais são gastos em atenção básica, com essa mudança, corre-se o risco grave de tirar o pouco da atenção básica para colocar em outras coisas.

Outro problema é a questão dos agentes comunitários de saúde. Há uma necessidade muito importante no âmbito da atenção básica, inclusive da saúde da família, de uma atualização, de uma adequação da participação do agente comunitário de saúde nas equipes que são da família. Porque o perfil demográfico da população mudou, o perfil epidemiológico mudou. Os agentes comunitários foram heroicos no início, inclusive antes de existir o Saúde da Família, para monitorar crianças com risco de mortalidade infantil, por acompanhar casos de diarreia, desnutrição, problema de aleitamento etc. Hoje há uma enorme quantidade de população idosa, com múltiplos medicamentos, que têm dificuldade funcional, muitas condições crônicas na população, inclusive nos mais jovens. Então, você precisar adequar e potencializar o trabalho do agente comunitário de saúde. A formação desses agentes precisa ser continuada, permanente, não é o caso de o trabalhador ter um cursinho, seja de 30 dias ou de 6 meses, para virar agente comunitário. Ele vai estar todos os dias, todas as semanas, todos os anos participando de uma atividade. O que a PNAB fez? Em vez de avançar na melhoria do papel, da inserção do agente comunitário na equipe de saúde da família, acabou fazendo uma síntese desarticuladora.

A nova PNAB diz que é obrigado a ter no mínimo um agente comunitário de saúde por equipe. Isso é uma loucura, porque significa que não precisa ter quatro agentes comunitários... Você precisa ter um, então você reduz a categoria. Eu até falei isso num debate lá na Câmara Federal, com os próprios agentes comunitários, e essa aprovação pode muito bem significar que o agente comunitário de saúde vai ser uma categoria profissional em extinção. De cada quatro, vai ficar com um. Além disso, esses profissionais terão que fazer outras atividades, pela formação que vão receber, que é de técnico de enfermagem. Eles estarão habilitados para fazer atividades de técnico de enfermagem, de agentes de endemia... virou uma miscelânea.

Então, uma questão que era necessária ser abordada, definida, promulgada, que era a inserção do agente comunitário, acabou sendo altamente afetada negativamente, e com isso podendo correr o risco inclusive de ficar desarticulada, fora daquilo que seria a relevância do agente comunitário. Outra questão que afetou a Saúde da Família foi a questão do financiamento. A atenção básica tem um financiamento que chama PAB Fixo, que é aquele piso da atenção básica fixo, um valor per capita que o município recebe como transferência do Governo Federal em função do número de habitantes de cada localidade. Esse recurso é transferido para todo o sistema. É um valor muito irrisório, em média 24 reais por habitante, 2 reais por mês. É irrisório, não dá para nada. Mas, se criou no Brasil um outro PAB, um piso de atenção básica variável que era destinado a incentivar a expansão da Saúde da Família. Quando ele foi criado, foi um enorme avanço porque ele não é per capta, é um montante. Para implantar uma nova equipe da saúde da família, você recebe sei lá, 10, 12 mil reais; para manter aquela equipe funcionando regularmente, você recebe mais tantos mil reais a cada mês. E o PAB Variável foi o grande recurso de melhoria do financiamento da atenção básica, para incentivar a sua expansão pela Saúde da família. Agora, com a revisão da PNAB, com o argumento de que se queria incentivar todo mundo a fazer Saúde da Família, esse financiamento do PAB Variável passou a ser destinado à organização de qualquer tipo de equipe. Uma configuração que não seja a saúde da família mas que seja parecida já pode receber o PAB Variável. Então, na prática, está-se fragilizando o montante de dinheiro que era exclusivo para a Saúde da Família.

Qual a importância da Atenção Primária em Saúde para a garantia da saúde da população?

Tem uma expressão que a gente costuma usar, que é a seguinte: atenção primária em saúde é o SUS. Ela é a inovação do SUS, porque antes do SUS já existiam hospitais, já existiam ambulatórios, já existiam inclusive lugares de realização de exames, locais de atendimento de urgência, emergência. Tudo isso já existia. A inovação no SUS foi a atenção básica. E essa imensa rede que foi construída - são mais de 40 mil equipes de saúde da família em todo o Brasil, 40 mil médicos, 40 mil enfermeiros, entre 40 e 60 mil técnicos e auxiliares de enfermagem e 300 mil agentes comunitários de saúde. É uma imensa rede diluída em todo o território nacional. Isso é o SUS.

É a partir do atendimento na atenção primária que você tem possibilidade de transitar pelo sistema de saúde, de fazer um exame, de ser encaminhada para um atendimento especializado, de ir para um hospital, de fazer um transplante se for necessário, de fazer uma cirurgia, etc. Com essa extensa rede de atenção primária pública que foi organizada, se você trouxesse para o SUS a oferta exclusiva dos serviços privados que hoje oferecem serviço para o SUS, seria um grande avanço do ponto de vista de alcançar a universalidade e oferecer para todo o público aquilo que seriam serviços completos, integrais, qualificados no sistema de saúde. Para falar objetivamente: as Santas Casas são grandes hospitais tradicionais no Brasil, que atendem 85% em média de usuários do SUS. Elas deveriam fazer parte exclusiva da rede do SUS. O Sistema Único de Saúde deveria ter capacidade de estabelecer que 100% das atividades oferecidas pelas Santas Casas fossem para o SUS. E que seus profissionais fossem adequadamente remunerados e incentivados porque estariam prestando um atendimento para o sistema único de saúde em benefício da totalidade da população. E com isso a gente teria uma capacidade de universalizar, de agilizar, e organizar o sistema muito maior do que tem hoje. Boa parte das Santas Casas fazem atividades de ensino e pesquisa e isso tudo é exclusivamente o sistema único de saúde. Muitos laboratórios de imagem e de análise bioquímica, muitos centros diagnósticos atendem parcelas muito grande do sistema único de saúde e poderiam ser contratados de maneira exclusiva para o sistema único de saúde de maneira a beneficiar a população. Em vez de se pegar tudo que é público, privatizar e acabar com aquilo, fazer uma hiper fragmentação, você faria uma canalização de esforços da capacidade instalada, dos recursos da rede privada, dos serviços privados para a oferta do sistema público.

Assim é feito na Inglaterra. Deveria se organizar uma autarquia do SUS, como tem autarquia do NHS, que é uma estrutura de serviços, assim como as universidades são estruturas de serviço no Brasil. A Fiocruz pertence ao Ministério da Saúde, mas é uma estrutura que tem a sua autonomia, a sua autonomia de prestação de serviço, de gestão, de desenvolvimentos, etc. Isso é uma maravilha. Se a gente tivesse um sistema de saúde que tivesse uma grande autarquia nacional e que operasse na perspectiva exclusivamente pública e de todos os contratos e ofertas de serviço que fossem públicos, garantiria a participação do município na questão da gestão em termos de seus interesses, do resultado do governo federal, mas protegeria essa estrutura de funcionamento de dificuldades burocráticas, administrativas, intempestivas, de mudanças e oscilações que acontecem, por exemplo, nas mudanças de gestão. Logo, você teria possibilidade de fazer uma trajetória ao contrário dessa trajetória privatizante mas, com grande êxito.

Fotos/Ilustrações: 

EPSJV/Fiocruz